De vez em quando, há palavras que irrompem pelos nossos dias adentro e adquirem novos significados. Foi o que aconteceu recentemente com os termos irrevogável e geringonça, ambos trazidos à actualidade do debate político por um dos nossos mestres em expressões que ficam no ouvido, vulgarmente conhecidas por sound bites (à letra: “mordidelas sonoras”), Paulo Portas (PP). Se é certo que não existem dúvidas quanto à responsabilidade da actualização do significado do adjectivo irrevogável, tem-se divergido quanto à paternidade do novo uso da palavra que fez com que estes dias, que já deviam ser os do tempo das cerejas, que vão faltando, continuem a ser os do tempo da geringonça.
Em boa verdade, quem introduziu o vocábulo na discussão política foi Vasco Pulido Valente (VPV), com a sua verve de velha azeda e mal disposta, numa crónica publicada no Público em Agosto de 2014, em dias em que ninguém ousaria conjecturar que no final de 2015 Portugal iria iniciar uma nova experiência de governação suportada por uma coligação que, de tão improvável, muitos diriam ser impossível. Mas a geringonça de VPV não era o governo de António Costa, mas sim o PS, então ainda liderado por António José Seguro.
As palavras são como as cerejas: vêm umas atrás das outras e é preciso puxar por elas para lhes tomar o gosto. Puxemos pelo pé da geringonça, para melhor a entendermos.
Dizem os dicionários portugueses que uma geringonça é obra maljeitosa e mal-armada que ameaça desconjuntar-se. Todavia, na sua origem, este vocábulo não tem a ver com maquinetas mal-amanhadas, mas com a linguagem propriamente dita.
Geringonça é um termo que a língua portuguesa importou do castelhano jerigonza, que o foi buscar ao jergon da antiga língua occitana ou provençal, que, por sua vez, deriva do termo do francês antigo jargon, que remete para o gorjeio de pássaros, com o sentido de linguajar incompreensível. Ou seja, em português, jargon, por importação directa do francês, deu jargão e, por intermediação do castelhano, acabou em geringonça. Na nossa língua, ambas as palavras têm o mesmo significado, podendo ser substituídas, com vantagem, por gíria. No entanto, a geringonça portuguesa adquiriu um novo significado, que não partilha com a jeringonza espanhola, o de traquitana mal-armada que ameaça desconjuntar-se a qualquer momento, a que também se pode chamar, por exemplo, caranguejola.
Quando PP, dirigindo-se aos partidos que iriam sustentar o actual governo de Portugal, afirmou que a solução governativa que se ensaiava “não é bem um governo, é uma geringonça”, mais do que um postulado político, estava a afirmar uma profecia… irrevogável. Ou seja, a coligação que se anunciava não teria pernas para andar e iria desconjuntar-se na tentativa de ultrapassar a primeira curva da estrada. Desde a data em que PP disse o que disse até ao momento em que escrevo estas linhas, já passaram, exactamente, 201 dias e a geringonça, que não era bem um governo, lá vai seguindo o seu caminho, dando mostras de ser suficientemente consistente e robusta para resistir aos abalos da estrada esburacada que tem que atravessar. E assim, tal como o irrevogável, que ironicamente ganhou um novo sentido, passando a significar, além do que sempre significou, o seu contrário, também a geringonça tem hoje uma nova acepção, que urge dicionarizar: “coligação inesperada que se presumia precária e breve e que, afinal, é sólida e resistente”. Está demonstrado: no que toca a talentos proféticos, PP está à altura do bruxo de Fafe.
Se outro sucesso não tiver, a experiência política que hoje se vive em Portugal terá o mérito de introduzir um novo paradigma na vida política portuguesa, em que se esvai a ideia do voto útil, por finalmente se perceber que todos os votos podem ser igualmente úteis e que, num mundo em que todos fazemos parte de minorias, as maiorias que governam passarão a ser feitas de somatórios de minorias de geometrias variáveis. Beneficiam os cidadãos, que passam a ter uma capacidade de escrutínio muito mais efectiva. Melhora a transparência e a eficácia do trabalho dos políticos, que passarão a perceber que têm que prestar contas claras aos eleitores que representam e que, provavelmente, tenderão a encarar a actividade política mais como serviço prestado à comunidade do que como etapas em carreiras ou passos em frente em projectos de vida pessoais. É a qualidade da democracia que sai a ganhar, portanto.
Não tarda muito, vêm aí eleições autárquicas. Haverá novas geringonças na calha? Eu sei de, pelo menos, uma terra que anda necessitada de uma.
António Amaro das Neves