Foi um objetivo do milénio e prossegue na lista de afazeres da humanidade: acabar com a pobreza. Porque a pobreza diminui ou retira a possibilidade de qualidade e dignidade de vida – direitos naturais. E porque é origem da desigualdade e uma barreira quase intransponível na pirâmide social e das oportunidades. Dito de outra forma, a pobreza é uma barreira para a cidadania.
Uma criança que não tenha uma alimentação equilibrada e diversificada, cujo núcleo familiar viva sob pressão de dificuldades económicas e consequentes tensões interpessoais, terá mais probabilidade de ter menos qualidade de saúde e não estará em condições ideias para aprender e se desenvolver enquanto indivíduo, logo, não será livre nas suas escolhas nem capaz de usufruir de oportunidades e direitos de participação na vida pública. Por consequência, essa criança-cidadã terá dificuldade em desenvolver o seu talento, fazer ouvir a sua voz e encontrar forma de contribuir para o bem da sociedade.
A hierarquia de necessidades formulada por Maslow (1909) torna óbvio que este esforço para efetivar a cidadania, para alguém que se tem de preocupar com necessidades básicas fisiológicas ou de segurança, é imensamente maior do que o de outrem que, afortunado, viva em paz e com recursos materiais, num contexto estimulante e harmonioso.
Existe, por isso, um custo social, oculto na pobreza, que passa pela impossibilidade de potenciar o talento que, não desenvolvido, nos impede de progredir e desenvolver enquanto sociedade; afeta, também, os níveis de criminalidade que fazem a despesa de segurança aumentar e o bem-estar comunitário diminuir; faz aumentar o custo para o sistema de saúde pública, já que tem de cuidar cidadãos pouco saudáveis; potencia a tensão social, e, consequentemente, política, gerada pela privação de condições dignas de vida e desigualdade, que influencia negativamente a confiança interpessoal e institucional, algo essencial para a prossecução do bem comum.
A existência de pobreza e das assimetrias no mundo pouco tem a haver com a falta de recursos, mas sim com a sua distribuição. A solução é óbvia e passa pela (re)distribuição de riqueza, mais concretamente, a atribuição de um rendimento básico universal que garanta a resposta às necessidades básicas de habitação, alimentação, descanso e saúde. Cumprida esta base, diminuirão drasticamente as assimetrias e tensões que pudessem ameaçar a segurança da comunidade, criando condições para que as necessidades sociais e afetivas se observem. E, nessa altura, estamos a um passo de nos dedicarmos à realização pessoal e coletiva, em busca da felicidade que John Stuart Mill diz só ser maximizada quando o indivíduo atinge o seu potencial intelectual. Um autor que está a relembrar o mundo desta lógica comprovada do rendimento básico universal – e da inerente necessidade de repensar os conceitos de trabalho e bem-estar – é Rutger Bergman, com a sua obra Utopia for realists.
Há um outro aspeto importante na relação entre pobreza e cidadania, além da garantia de cumprimento dos direitos humanos como condição de liberdade efetiva para o exercício pleno da cidadania. Esse outro aspeto é a relação da dualidade pobreza/riqueza com o estado-social democrático. Por uma motivação altruísta intrínseca, mas também fruto do entendimento egocêntrico/egoísta (mesmo que não consciente) de que o bem-estar pessoal depende de um contexto em comunidade harmonioso, a equidade social é em simultâneo uma condição necessária para que a atenção e motivação do indivíduo se desvie de si próprio para contribuir para o bem-estar coletivo.
Mais ainda, quando liberto da luta pela sobrevivência, o individuo tem disponibilidade mental e de tempo para se informar, o que pressupõe o cumprimento de um outro direito humano (e constitucional), o direito à informação. Segundo o autor Henry Milner, um cidadão informado pondera conscientemente o impacto socioeconómico de longo prazo das suas escolhas, e tende, não só a participar mais na vida pública (e concretamente, política), como a optar por uma distribuição equitativa dos recursos materiais e intelectuais, no sentido de instituir um modelo de estado-social democrático. Por sua vez, esse cidadão só se (melhor) capacita de conhecimentos e competências para o exercício pleno da cidadania (literacia cívica), se inserido no seio de um sistema de políticas e dinâmicas sociais que visem um investimento no progresso humano, o que passa pela distribuição equitativa, antes de mais, dos recursos básicos e recursos intelectuais, criando, assim, um círculo virtuoso. Deste feito, uma sociedade caracterizada por desigualdades não é solo fértil para o florescer de uma democracia plena onde se cumprem desígnios de liberdade e igualdade. Da mesma forma que relações de poder e assimetrias à escala global são impedimentos de qualquer ideia de desenvolvimento sustentável.
“(…) é manifestamente contra a natureza, de qualquer maneira que a definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, ou que um punhado de pessoas nade no supérfluo enquanto à multidão esfomeada falta o necessário.” Russeau, Discursos sobre a origem da desigualdade (1754).
A boa notícia, tal como nos mostram os dados trabalhados por Hans Roslin, é que a humanidade parece estar no bom caminho para terminar com a pobreza (extrema)… Um passo de cada vez no sentido de uma cidadania global.