Pelo terceiro ano, a Festa do Cinema voltou a algumas salas de cinema em Portugal. Terminado o evento, o promotor, a APEC – Associação Portuguesa de Empresas Cinematográficas, vangloriou-se por um aumento de 26% em relação à edição anterior. No texto auto-laudatório podia ler-se ainda que esta iniciativa “visa promover o ato cultural da experiência cinematográfica em sala” e que se trata de “uma aposta ganha e para manter na agenda cultural dos próximos anos”.
Vamos por partes: “visa promover o ato cultural da experiência cinematográfica em sala”
Mas afinal, a que “ato cultural” se referem os promotores? De acordo com os dados oficiais disponibilizados pelo ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual, os três filmes mais vistos, com pouco mais de 100 mil espectadores foram Alien: Covenant, Rei Artur: A Lenda da Espada e Velocidade Furiosa 8. Ou seja, 37% dos espectadores que participaram na Festa do Cinema viram os filmes que já eram os filmes mais vistos nas semanas anteriores.
Dos 20 filmes mais vistos nessa festa, a contabilidade é ainda mais contundente: 12 são norte-americanos, 3 franceses, 2 são britânicos, 2 portugueses e 1 italiano. Em suma, 14 dos 20 filmes são anglo-saxónicos, e apenas 2 portugueses. Os 2 portugueses da lista são Perdidos, um remake do filme de suspense norte-americano Mar Aberto (2003, Chris Kentis), e Uma vida à espera, um drama social, ambos realizados por Sérgio Graciano.
Para além desta predominância de cinema anglo-saxónico, que por si já é um mau sintoma quanto à falta de diversidade da oferta, também se verifica uma vista curta nas propostas apresentadas. Como a Festa beneficia sobretudo os filmes estreados na 5ª feira anterior, as distribuidoras planeiam estrategicamente produtos com menor potencial comercial, como aconteceu com os dois títulos portugueses. Não será também de estranhar que apenas 3 dos filmes mais vistos durante a Festa não tenham sido distribuídos pela NOS Lusomundo Audiovisuais e pela Big Picture 2 Films, os dois distribuidores que monopolizam o sector em Portugal.
Avançando: “uma aposta ganha e para manter na agenda cultural dos próximos anos”
Outro dos dados surpreendentes referem-se ao número de espectadores por distrito. Se Lisboa e Porto somam 52% dos espectadores, não deixa de ser chocante constatar que há 5 distritos e 1 região autónoma (Açores) que tiveram cada menos de 1% dos espectadores da Festa! O caso do Alentejo é alarmante: Beja somou 83 (!!) espectadores durante os 3 dias da Festa e Évora apenas 44 (!!!).
Estes dados revelam, em toda a sua obscenidade, o cenário actual do panorama cinematográfico português, com uma oferta cinematográfica desigual e discriminatória, onde há zonas significativas do território que não beneficiam de uma oferta cinematográfica satisfatória, tanto em quantidade como em diversidade. Se a primeira “culpa” será dos agentes privados que exploram o negócio do cinema, não posso deixar de apontar o dedo a quem deveria regular o sector com outro sentido público e com responsabilidades de garantir a oferta e a diversidade cultural a toda a população.
Por isso mesmo, repito aqui aquilo que deixei no ar há um ano atrás, por alturas desta suposta “Festa” do Cinema:
“Enquanto se entretém o povo com pão e circo, não se resolvem os problemas estruturais do cinema em Portugal:
1) em 207 dos 308 concelhos do país não existe um único recinto de cinema!
2) a quota de mercado dos 5 principais exibidores é de 92,7%!
3) nos últimos 5 anos, a quota de mercado para o cinema português registou uma média de 4,14%! (mesmo inflacionado pelo sucesso do novo recordista O Pátio das Cantigas, com 606 mil espectadores)
Festa, mas festa a sério, só conheço a Festa do Avante! Não há festa como essa!”