É p’ra amanhã

«Não poderia conceber um favor maior à minha mente do que abandoná-la a um completo ócio para, assim, me tornar íntimo de mim mesmo (…). Imagino tantas quimeras e monstros (…), que, para contemplar a sua estranheza e absurdidade, comecei a registá-los por escrito (…)», em Da Ociosidade, Ensaios, por Michel de Montaigne.

«Ai que prazer / Não cumprir um dever, / (…) Ler é maçada, / Estudar é nada.», em Liberdade, de Fernando Pessoa.

Sento-me num café, ponho os auscultadores a tocar Dave Brubeck, abro o caderno que comprei na esquina e começo a escrever. À mão e a preto. Primeiro devagar, depois com mais ritmo, à medida que surgem mais ideias, tal e qual como o jazz que ouço.

Talvez pareça um pouco pretensioso mas, na verdade, não tenho muitas oportunidades para me sentar a escrever enquanto ouço boa música. Dedico pouco tempo ao ócio. Ainda assim, escrever, bem ou mal, sobre trivialidades ou assuntos sérios, é sempre tempo bem despendido. Livros e cinema serão também uma boa forma de usar o meu tempo. Melhor ainda é, sem dúvida, comer queijo e conversar.

A razão pela qual escrevo sobre o meu tempo livre é simples: pareceu-me uma boa ideia apresentar-me um pouco, e também deixar algumas ideias sobre como usarei este espaço. Para já, posso deixar claro que escrever para o Ócio é um prazer e faço-o em regime de profunda ociosidade. Certa vez, um amigo meu disse-me: “Trabalho é trabalho, cognac é cognac. Mas se é cognac, que seja cognac. E do melhor!”. Escrever aqui será, portanto, o meu cognac.

Lembro-me do dia em que recebi o convite da Betânia Ribeiro para escrever aqui: um dia frio e chuvoso que não prometia nada de muito interessante. Tinha acabado de chegar ao laboratório e, como habitualmente, abri o portátil para passar em revista o email. Preparava-me para passar à tarefa seguinte quando reparei que tinha uma mensagem pendente na minha conta de uma certa rede social muito conhecida. Curioso, fui ler a mensagem. Para minha grande felicidade era um convite da Betânia (mais tarde do Samuel Silva) para escrever mensalmente para o Ócio. Seria um dos colunistas e opinadores. Como é evidente, aceitei o convite com enorme entusiasmo.

Mas, prometi apresentar-me e, parte disso, passa por explicar onde vivo e o que faço, hmm…, para “ganhar a vida”. Sou estudante de medicina na Universidade do Minho, mas actualmente vivo em Filadélfia, nos EUA, onde faço investigação científica. O meu trabalho consiste, em parte, em tentar perceber como é que o cérebro regula o sono. No laboratório onde trabalho utilizamos a mosca da fruta como modelo animal para vasculhar o cérebro. Obviamente é um cérebro minúsculo e muito mais simples do que o nosso mas já suficientemente complexo para se abordarem questões básicas de computação cerebral. De forma muito resumida – e, espero eu, não muito aborrecida – é este o meu trabalho.

Falar de trabalho é um excelente mote para se falar de ócio e, neste contexto, explicar como pretendo utilizar este espaço. A redação pediu-me que escreva sobre qualquer tema que me pareça interessante. Apesar da enorme liberdade, isso traz muitas responsabilidades que podem ser formuladas em perguntas como “Será que é pertinente escrever isto?”; “Será que alguém me vai perceber?”; “Estou a ver as coisas com clareza suficiente?”. Mas também questões mais interessantes como: “Isto vai despertar a atenção de alguém? De quem?”; “Estou a ser o mais compreensivo e inclusivo possível?”; “Isto vai incomodar alguém? Quem? E por boas razões?”. Vou tentar, então, fazer o meu melhor para satisfazer estas questões. Quanto à temática e à forma dos textos, não pretendo evitar nenhum assunto – mesmo que sensível, e não me parece que tenha uma estrutura-tipo para textos futuros. Tentarei escrever sempre sem compromisso com ninguém que não seja o Ócio e os seus leitores. Espero gerar alguma discussão sobre o que escrevo? Evidentemente. Esse é o grande objectivo de quem escreve.

O meu café arrefeceu e o Time Out está a chegar ao fim – o senhor Brubeck e a sua banda preparam-se para guardar os instrumentos. É sempre bom tomar fêlego com café e música. E palavras. E melhor ainda é acabar cantando Variações: «É p’ra amanhã/ Bem podias viver hoje./ Porque amanhã quem sabe se vais cá estar»

Trabalhar?! É p’ra amanhã.