
Créditos Fotográficos: Paulo Pacheco
Ainda o público procura ocupar os seus lugares e já a peça começou. A um canto, num cenário dentro de um cenário, toca-se bateria, de costas para a audiência, de forma frenética. Em palco, deitados e camuflados pela inércia do mobiliário que os rodeia, estão dois actores – a plateia não se parece aperceber até a bateria cessar e começar um canto (a jeito de grito de guerra) que escapa das duas personagens que neste ponto acordam e não mais se confundem com peças de cenografia.
A Conquista do Pólo Sul (texto de Manfred Karge), agora encenado por Beatriz Batarda, decorre e termina como começa: há pouco tempo para respirar. O ar, como será no Pólo, é rarefeito e, como no quotidiano daqueles que enfrentem os mesmos desafios que as personagens da história, prende-se a nós na garganta. E é imperdível.
Slupianek (Bruno Nogueira), Buscher (Nuno Lopes), Seiffert (Miguel Damião) Frankieboy (Ana Brandão) e Braukmann (Romeu Costa) são um grupo de desempregados, amigos de “flippers e copos”, que embarcam na inglória missão de tentar o escape da realidade que os faz reféns. Quando Seiffert – exausto da busca por um trabalho que não lhe é permitido e cansado de idas pouco úteis ao centro de emprego – se decidi suicidar, o grupo, liderado por Slupianek, furta os seus planos e inicia uma corajosa odisseia pelos planos da imaginação. Inspirado pela expedição de Roald Amundsen, que em 1911 alcançou o Pólo Sul, Slupianek propõe que também eles – cujos horizontes em qualquer direcção parecem desenhar apenas uma constante falta de perspetivas – partam à conquista do Pólo Sul, ali, no sótão, assumindo as identidades dos membros da expedição original. As capacidades inerentes à tarefa aprendem-se. Os apetrechos necessários conseguem-se. Encontram-se aliados caninos – um Husky é o companheiro ideal e Frankieboy é o husky perfeito. Há uma total entrega à missão que se apresenta. O cenário ajuda: à história, as pilhas de móveis ajudam a construir as montanhas, paredes e precipícios de gelo.
Ao público, o brilhante trabalho de cenografia e desenho de luz ajuda à navegação dos diferentes planos (físico, o sótão e metafísico, o Pólo) que as personagens vão desbravando. A Slupianek e companhia sai a sorte grande quando a companheira de Braukmann (A Braukmann – interpretada por Flávia Gusmão) deixa roupa branca a secar no sótão: agora nada falta. A Braukmann é, aliás, o íman que prende à realidade as outras personagens: trabalha. Mas o seu trabalho é ingrato: todos os dias pena numa roulotte que lhe intoxica a pele, cabelos, pulmões e alma. Antevê-se que qualquer emprego que seja conseguido por qualquer uma das personagens será assim: um outro mal.
Com prestações irrepreensíveis tanto a nível de encenação (note-se que a peça em si é uma ode à criação no contexto de teatro: a imaginação como motor da obra, que transforma lençóis em neve e sótãos em gelo), como de representação. É de sublinhar a total entrega dos actores a um texto que é marcado por uma enorme multitude de momentos de tensão. A peça termina como começa: a esperança é pouca e, se no início a imaginação se apresentava como força redentora capaz de resgatar o grupo do abismo em que se encontrava, agora prende-o num outro. E quem ganha é o público, no conforto burguês do seu lugar na plateia, a espreitar uma realidade que gostava de imaginar diferente.