Easy Rider

<<Get your motor runnin’

Head out on the highway

Lookin’ for adventure

And whatever comes our way

Yeah Darlin’ go make it happen

Take the world in a love embrace

Fire all of your guns at once

And explode into space.>>

Steppenwolf, 1968

 

Ao irmos estrada fora pensamos no nosso destino e de como lá chegar antes de que a estrada se acabe. Se, por azar, acaba antes de chegarmos, encontramos outro caminho ou abrimos outra estrada.

A nossa geração seguia sem relógio e de cabelo ao vento num século jovem que parecia rolar sem constrangimentos. Mas o que percebemos do horizonte, na estrada à nossa frente, é uma fracção do mundo. Somos míopes sobre o futuro quando pensamos que já o encontramos. E, antes de chegarmos ao fim, há contratempos: o motor falha e o combustível esgota-se e somos obrigados a parar na berma e olhar o mapa.

O “Sim” ao Brexit e a vitória de Donald Trump fizeram-se sentir como essa falha no motor. Um tropeço no desenrolar da história do mundo. Uma catástrofe exagerada, capaz de nos desequilibrar e incendiar na berma da estrada.

Esses dois acontecimentos, e as reações que se lhes seguiram, levam-me a pensar no final de Easy Rider, de Dennis Hopper (1969). O filme acaba com os hippies Wyatt (Peter Fonda), e Billy (Dennis Hopper) a “cavalgarem” intrepidamente por uma estrada do Louisiana, na sua busca contínua do que é, afinal, ser americano. De súbito, são interceptados por dois homens numa pickup que não hesitaríamos em descrever como hillbillies. Os dois homens decidem “assustar” Wyatt e Billy (“I’m going to scare the shit outta them”). Billy mostra-lhes o dedo do meio ao que um dos homens responde com um tiro, atingindo Billy, que cai da mota para morrer na berma da estrada. Wyatt vem em seu socorro – tarde demais!, cobre-o com um casaco com a bandeira americana bordada nas costas, e volta à estrada em busca de ajuda. Entretanto, os homens na pickup voltam para trás e disparam contra Wyatt.

Na derradeira cena final, vemos a moto de Wyatt a arder na berma, com uma coluna negra de fumo a subir por entre os pântanos do Louisiana, enquanto que a câmara se afasta num movimento que encerra a cena como verdadeira para sempre.

Numa reação que agora só podemos considerar exagerada e injusta, a white working class dos EUA foi projectada como um conjunto de mineiros, operários e agricultores zangados, de vistas curtas e pouco educados do Midwest americano e a que Hillary Clinton, a certo ponto, chamou o seu basket of deplorables. O pobre cavaleiro da estrada a ser abatido pela ignorância, xenofobia e miopia dos destiladores de moonshine do Velho Oeste.

Que visão absurda! Sejamos razoáveis. É injusto, e não abona em nosso favor, retratarmos os apoiantes de Trump como hillbillies, numa caricatura fraca de milhões de americanos que não encaixam, de forma alguma, nessa personagem. Na verdade, muitos dos apoiantes de Trump são homens de meia idade com empregos estáveis, rendimentos anuais consideráveis e que vivem em cidades desenvolvidas com todas as comodidades acessíveis à classe média. É também interessante notar que um número bastante considerável de mulheres votou em Trump, assim como um número não desprezável de latinos. Perante isto o colunista John Cassidy acaba uma das suas análises sobre as eleições (How Donald Trump became President-elect, The New Yorker, 09 Nov. 2016) com um espantado Go figure.

A vitória de Trump (já ninguém se refere a ele como The Donald), o sucesso do “Sim” a favor do Brexit e a subida da extrema-direita em sondagens na União Europeia é a confirmação de que uma parte muito significativa da população americana e europeia está descontente com a sua situação económica e com o desenrolar dos acontecimentos nos seus países e no contexto internacional em que se inserem. De facto, é interessante observar que, no Reino Unido, as estatísticas do referendo se aproximam desconcertadamente das das eleições americanas: a mesma classe média, numa faixa etária semelhante, com os mesmos problemas de adaptação à globalização e à mobilidade de populações.

A crise de 2008, que afectou terrivelmente a classe média e que, na sua perspectiva, gerou poucos culpados e quase nenhuma reestruturação do sistema vigente e, para esse efeito, a mudança de protagonistas; o crescimento do desemprego; a estagnação económica; o alastrar assustador do terrorismo (que na UE gerou uma certa surpresa, “Mas… aqui também?”), e a actual guerra na Síria, que vem agravar as tensões complicadas do Médio Oriente e gerar uma crise humanitária gravíssima, ajudam a explicar o profundo descontentamento demonstrado por esses cidadãos. Uma das formas mais directas dos eleitores mostrarem o seu descontentamento com a classe política é pelo “castigo eleitoral”. Parece ser o caso.

Assim, não deveria ser motivo de espanto que os votos dos apoiantes de Trump e do Brexit sejam a manifestação de uma voz zangada em reação a uma situação mundial que, sejamos francos, não é satisfatória. O nosso século não começa bem, com terrorismo disseminado, guerras atrozes, crises humanitárias sem paralelo, uma crise financeira instável e que é mantida sem uma solução viável, problemas climáticos gravíssimos, profunda desconfiança política e perda da fé na democracia e nos sistemas de abertura. Os votos a favor de Trump e do Brexit devem ser, pois, considerados com bastante seriedade e não dispensados com um arrogante “eles não sabem o que estão a fazer”, quanto mais por terem sido apurados através de processos democráticos.

“Mas como é que alguém como Trump poderia, alguma vez, ganhar as eleições?” Esta questão, que na Europa tem o seu equivalente em “Mas como é que o Brexit ganhou?”, foi posta antes, durante e depois das eleições com tons que foram mudando com o decorrer dos acontecimentos. Antes: Ahah! Que disparate. a pergunta era feita em tom irónico, em jeito de piada (primeiro erro dos liberais apoiantes de Hillary Clinton: acharem que a opinião dos adversários pode ser desacreditada). Durante: Trump não se está a sair mal, mas vai acabar por perder (segundo erro: incapacidade de alargar perspectivas mesmo perante uma iminente mudança de contexto). Depois: O que é que eles foram fazer? (terceiro erro: reforçar a ideia de que podemos desacreditar quem vota na oposição). Ainda assim, a pergunta foi feita ao longo de todo o processo, o que mostra que muitos liberais, independentemente das suas crenças políticas, parecem ter as vistas curtas.

Embora Trump seja o legítimo futuro Presidente dos EUA, e embora tenha mudado o tom do discurso desde as eleições, devemos manter presentes as insinuações graves de misoginia, xenofobia, racismo, autoritarismo e nativismo caduco a que deu voz. É possível que o tenha feito apenas para ganhar votos (Trump é um bilionário de Nova Iorque que dificilmente se relaciona com os seus apoiantes do Midwest) mas, ainda assim, foram ditas coisas gravíssimas que nenhum candidato sério à presidência deveria defender: há pouco ou nenhum valor moral em argumentos sustentados com premissas que não podem ser construídas sem ofender mulheres, imigrantes, afro-americanos, mexicanos, o adversário político ou quem quer que tenha uma opinião contrária.

É interessante observar o aparente conforto de alguns dos apoiantes de Trump com princípios duvidosos. Isto não significa que, tal como nota Vann R. Newkik II, num artigo publicado na The Atlantic (This is who we are, 11 Nov. 2016), que esses mesmos apoiantes conduzam a sua vida de acordo com esses princípios ou sequer que concordem com eles, mas diz-nos que não se importam de estar associados aos mesmos, desde que isso lhes traga algum peso num sistema que parece tê-los esquecido. Por outro lado, é possível ler este “à-vontade” como o acordo que as pessoas estão dispostas a aceitar para que as suas necessidades possam ter uma hipótese de serem ouvidas.

Assim, a vitória de Trump é um duplo constrangimento. Por um lado, faz-nos perceber que uma grande parte da população de um país com um equilíbrio social complicado está absolutamente descontente com o estado actual do seu país e do mundo. Por outro lado, faz-nos perceber, embaraçosamente, a arrogância e condescendência com que muitos dos que se chamam liberais e democráticos têm pensado sobre os seus concidadãos, que vivem numa realidade muito diferente, é certo, mas ainda assim com aspirações e necessidades tão legítimas como as de qualquer outro. Dizer “Se apoias Hillary Clinton és indiscutivelmente progressista” é um exagero. Dizer “Se apoias Donald Trump és necessariamente sexista e racista” é injusto. Dizer  “Se não apoias Hillary Clinton és obviamente simpatizante de Trump” não é sensato. Infelizmente, as discussões durante o processo eleitoral basearam-se, em parte, nestes três princípios.

Considerando tudo isto, Hillary Clinton, nos EUA, e os que se opõe ao Brexit, no Reino Unido, perderam por mérito próprio.

Os protestantes anti-Trump (“Not my President”) estão obviamente frustrados, preocupados e até assustados com o que poderá acontecer no mundo a partir de Janeiro de 2017. Essa ansiedade é compreensível se pensarmos que o presidente-eleito terá acesso aos códigos nucleares do país mais poderoso do mundo. A sua posição em relação a diversos assuntos económicos ou ambientais é ambígua ou simplesmente desconhecida e o que Trump realmente pensa quando diz que vai erradicar o ISIS ou negociar com Putin é um enigma. É também possível que a preocupação não esteja necessariamente focada na personagem do presidente-eleito, mas antes no desequilíbrio causado pela maioria de republicanos na Casa dos Representantes e no Senado. Para alguns, Mike Pence, futuro vice-presidente, deve ser o motivo de preocupação.

Ainda assim, considerar-se que a vitória de Trump é injusta mostra um espírito de mau perdedor. Defender agora que Trump não é o legítimo presidente dos EUA porque não recebeu a maioria do voto popular é o equivalente a dizer-se que o nosso clube de futebol perdeu o jogo porque as regras da arbitragem não estão bem escritas, ou que se reprovou no exame porque não se estava à espera que fosse sair Camões.

Mas, mais uma vez, Trump e os seus, com bons ou maus ideais, promessas vazias ou sólidas, declarações infames ou argumentos válidos, ganharam democraticamente as eleições e, como tal, Trump será o legítimo presidente dos EUA. Para o bem e para o mal, essa será a realidade com que teremos de viver. Da mesma forma, na UE teremos de aprender a viver com a saída iminente do Reino Unido.

But… it sucks!, diz-me um colega. Oh, stop whining! The world won’t stop spinning around the sun., diz outro em resposta. E a isto podia acrescentar-se Neither democracy. De forma mais prosaica, encaixa bem aqui o sempre maternal “Se choras ainda levas por cima”.

Neste aspecto é admirável a posição adoptada por Bernie Sanders perante o resultado das eleições. Numa entrevista recente à BBC, Sanders defendeu que, agora que Trump foi eleito, todos devem reconhecê-lo como o futuro Presidente e desejar que tenha um mandato pacífico e bem sucedido (ainda que isso venha a ser difícil). Por outro lado, os que não concordam com as suas políticas devem empenhar-se numa oposição consistente e promotora de discussão. Só assim se faz boa democracia. Esta foi também a postura adoptada por Barack Obama.

Se nos EUA há Donald Trump, do outro lado do charco temos políticos como Nigel Farage, Marie Le Pen e Frauke Petri. Todos eles demagogos, todos eles nacionalistas, todos eles de mente pequena. Nigel Farage é um homenzinho mesquinho e triste, com ideais igualmente tristes sobre a UE e o seu país, e com uma agenda política triste também. Na verdade, não é difícil imaginar o senhor Farage a esboçar um sorriso de desdém caso lê-se esse texto (já leu coisas piores, com certeza): isso dar-lhe-ia uma oportunidade para tirar um certo prazer em que lhe chamassem pequeno e mesquinho, num sentimento distorcido de orgulho ao ser criticado por alguém que ele consideraria “iludido” pelo sistema. Noutro registo, Marie Le Pen é vividamente reacionária a todas as críticas que lhe fazem. Para alguém que se diz defensora da liberdade de expressão e do diálogo construtivo, Le Pen aborda a discussão política num tom demasiado alto e irritado. Na Alemanha, temos a senhora Preti, num registo semelhante, um pouco mais militar, talvez.

Em A República do Silêncio (1944), Jean-Paul Sartre escreveu o seguinte sobre a invasão da França pelos nazis: “Nunca fomos tão livres como durante a ocupação alemã”. Embora hoje a situação vivida nos EUA e na UE seja incomparavelmente mais benévola e pacífica do que a que se viveu durante a Segunda Guerra Mundial, as palavras de Sartre, no nosso contexto, ainda fazem sentido. Se achamos que o mundo está a votado à alienação, ao retrocesso de valores, à desfragmentação e desmembramento, ao colapso da moral e a uma inevitável catástrofe climática; se achamos que sectores da nossa sociedade não estão a votar com clareza, seja em referendos seja em eleições e, por isso, estão a comprometer o futuro, temos agora uma razão ainda maior e um dever moral acrescido de lutarmos por um mundo melhor e de trabalharmos em conjunto pela sociedade que queremos para nós e para as futuras gerações. O Reino Unido vai abandonar a UE; é uma boa razão para promovermos iniciativas que reforcem os laços entre os europeus. É também uma excelente oportunidade para reagirmos contra o sistema apático que se tem instalado na Europa e exigirmos mais dos nossos políticos, seja em matérias internas como no que respeita a outros países (penso na Síria). Donald Trump ganhou e vai deportar imigrantes, cancelar acordos climáticos históricos e retroceder em várias matérias sociais. É um bom motivo para fomentarmos o associativismo, esforçarmo-nos por reduzir a nossa pegada ambiental e lutar por direitos iguais para todos, mesmo para aqueles com quem não concordamos.

Além do mais, estas eleições e o Brexit fizeram-nos ver de que há um profundo sentimento de injustiça que estava a ser ignorado. É bom apercebermo-nos disso, para que possamos dar voz a grupos  ignorados e trabalharmos em conjunto numa sociedade mais justa. Nunca se é mais democrático como quando trabalhamos com os nossos opositores.

Muitas coisas foram ditas, escritas, comentadas e analisadas uma e outra vez, e outra, e outra, e outra, até ao enjoo. Este texto talvez se junto a essas mil e uma análises, já no ponto de saturação. No entanto, há três mensagens finais que deixo aqui. Uma delas é de Barack Obama, expressa no seu discurso sobre a vitória de Trump. A nossa geração está descontente e, num ano que parece funcionar segundo a Lei de Murphy, é fácil perder a confiança no futuro. Mas, seguindo as palavras de Obama: “[Os jovens] têm de se manter encorajados. Não se tornem cínicos. Nunca pensem que não podem fazer a diferença. Vale a pena lutar pelo que está certo.

As outras mensagens são de Bertrand Russell. Numa entrevista à BBC, o filósofo deixou dois conselhos simples para a gerações futuras: “aprendam quais são os factos e como é que os mesmos se relacionam com a verdade”; e “o amor é sábio, o ódio é insensato. Num mundo em que estamos cada vez mais próximos e mais intimamente ligados temos de aprender a tolerar o outro, temos de encarar o facto de que algumas pessoas dizem coisas de que não gostamos”.

Há muitas estradas a percorrer. Muitos pântanos para atravessar. Muitas discórdias pelo caminho. Haverá quem nos queira atirar à berma da estrada e rir entre as chamas. Há quem não encontre significado em caminhar. Há quem procure significados escondidos, e quem ache que o significado está em tentar encontrá-los.

Há muitos destinos. Façamo-nos à estrada…