“Ninguém mais do que eu, decerto, aprecia e venera o caminho-de-ferro […] As coisas mais úteis, porém, são importunas, e mesmo escandalosas quando invadem brutalmente lugares que lhes não são congéneres.”
em A Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queiroz
Olhando em perspetiva para os tempos em que vivemos, percebemos que as mudanças são inevitáveis. Na verdade, onde quer que existam homens, mudar parece ser inevitável. No entanto, as mudanças, dependendo do contexto em que ocorrem, podem projetar-nos para o futuro e para a inovação do nosso país ou comunidade – e as estas chamamos “progresso” – ou podem atirar-nos de volta para um ponto em que olhamos em nossa volta e dizemos “já estive aqui” – a estas chamamos “retrocesso”. Há também as mudanças nulas a que alguns gostam de chamar “estagnação”.
Apesar das mais ferozes críticas e do constante pessimismo, Portugal pode ser considerado um país tendencialmente progressista. Sim, a mudança pode ser lenta e em pequenos saltos. As inovações tecnológicas por vezes chegam mais tarde do que a outros países europeus e Portugal parece, por vezes, funcionar a dois tempos no que respeita à evolução social e cultural. Contudo, estas contingências serão sempre inevitáveis, pelo que devemos olhar para Portugal como um país em progresso constante. Talvez lento, mas constante.
Um dos textos que melhor retrata o impacto do progresso tecnológico e económico na vida portuguesa será “O Largo“, de Manuel da Fonseca. O autor descreve-nos a chegada do comboio – um dos símbolos máximos da progressão tecnológica e económica – como imagem alegórica do futuro que chega à nossa, de outra forma, tão pacata e distraída existência. Manuel da Fonseca escreveu: “O comboio matou o Largo […] Veio o comboio e mudou a Vila“. De facto, parece ser inevitável que o futuro chegue a Portugal, a resfolegar fumo e vapor e barulho e velocidade, para mudar o país de uma vez e para sempre.
Verdade seja dita que, por vezes, quando o futuro chega, não sabemos lidar muito bem com ele: a ambição é muita e a pompa provinciana também tem o seu peso. É o que nos mostra a Marquesa de Rio Maior, de forma bastante pitoresca, ao descrever como a pequena locomotiva D. Luiz não pôde com todo o peso da corte demasiado anafada que lhe puseram em cima. Por outro lado, temos a escrita sofisticada de Eça de Queiroz que, de forma elegantemente irónica, nos dá a entender n’As Farpas a importância de caminhos-de-ferro funcionais e, portanto, de uma tecnologia apta como necessidade para o desenvolvimento do país.
Estranhamente, a imagem do comboio, a avançar destemidamente por entre as montanhas e vales portugueses, é o que está em “perigo” neste início do século XXI. 130 anos depois da chegada do comboio a Portugal é esse mesmo “enorme garrafão” metálico com rodas que vê a sua existência ameaçada. Metaforicamente falando, claro. Na verdade, e para não deixar o leitor “às escuras”, refiro-me a um comboio e respetiva linha em particular: o comboio da linha do Tua.
É do conhecimento de todos que a linha do Tua, útil ou inútil para fins comerciais e, ou turísticos, será muito provavelmente inundada assim que se ative a nova barragem de Foz Tua. Ironicamente, a construção da barragem é feita em nome do mesmo progresso económico e social que motivou a construção dos caminhos-de-ferro naquela região. Naturalmente, com o anúncio da construção da barragem surgiram questões relevantes sobre os impactos nos sectores da produção vinícola e do turismo, sobre os problemas de isolamento das populações envolvidas e, por último, sobre a classificação da região como Património da Humanidade da UNESCO. “Mas a barragem é essencial (ponto)”. Talvez a empresa que promoveu a sua construção não tenha usado necessariamente estas palavras, mas supõe-se que o devem ter pensado, se considerarmos os vários milhões de euros investidos e os riscos envolvidos.
Contudo, sejamos razoáveis na avaliação deste assunto. Por um lado, o progresso não deve ser um fim que justifique todos os meios. A isso chama-se “retrocesso”. Por outro, a evolução de um país faz-se através de renovações por vezes difíceis mas que, se devidamente pesadas, se justificam e são benéficas a longo prazo.
É verdade que parece um pouco anacrónico que se continue a insistir na construção de barragens ou infraestruturas semelhantes em regiões que dependem de um equilíbrio delicado para sobreviverem e que, muitas vezes, têm uma importância histórica que vai muito além do seu puro valor comercial e turístico. Tome-se os exemplos de Vilarinho das Furnas, de Foz Côa e agora de Foz Tua. Por um lado, o país evolui no sentido do aproveitamento de energias renováveis de baixo impacto ambiental, ao mesmo tempo que vai submergindo o seu património com a construção de barragens. No entanto, é possível que aspetos de cariz prático, técnico e económico justifiquem, de facto, este tipo de estruturas. Nesse caso, devemos olhar para a inundação de certas regiões como um “investimento” que o país faz em nome do seu tão necessário progresso? Difícil de responder. Será sempre o tempo a determinar a utilidade destes “investimentos”.
Talvez a estrada que passa junto ao Mosteiro da Batalha, a sombra do CCB sobre os Jerónimos, a falta de ordenamento que ensombrou durante décadas as Sete Fontes ou a construção ignorante junto às ruínas da Cividade nos possam ensinar algo sobre o “investimento de património” como preço a pagar pela evolução económica do país. Estes monumentos, que se revestem de um valor histórico e cultural essenciais para a identidade de Portugal enquanto país são um exemplo de como estamos, por vezes, dispostos a perder parte dessa identidade em nome de uma outra que, para já, é só imaginada. À máxima “Que o progresso não pare” responda-se “Evolua-se com inteligência”.
Ao escrever isto lembro-me inevitavelmente de uma passagem de outra obra de Eça de Queiroz, A Correspondência de Fradique Mendes, em que é abordada a utilidade da tecnologia e do progresso fora do contexto adequado. De facto, quando falamos de “progresso” a palavra “contexto” é absolutamente essencial. O contexto determina o sentido da evolução das coisas, ao mesmo tempo que o progresso altera o contexto dessas mesmas coisas. Dinâmica complicada…
Qual será, então, o contexto em que se inserem a região do Tua e Portugal? Será que Portugal se contextualiza unicamente nas suas fronteiras e arquipélagos como nação eternamente irreverente e predestinada, como diriam os mais saudosistas? Ou será que Portugal, como muitos outros países, nunca esteve pré-determinado, apenas aconteceu e é apenas uma região do globo com algumas características peculiares, e que vai e vem com o sabor dos tempos? Portugal será o Quinto Império, como o imaginaram Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, ou afinal “Isto não é um país. É um sítio. E ainda por cima, mal frequentado!“, como protestou Almada Negreiros?
Ao pensarmos nestas questões – e fazemo-lo constantemente – olhemos para o Tua, a sua linha de comboio e a sua nova barragem, e paremos para pensar o que é, afinal, a identidade portuguesa e, igualmente importante, se essa identidade é ou não mutável. Não carreguemos a locomotiva do progresso com o peso morto do passado, como nos descreveu a Marquesa de Rio Maior. Porém, ao mesmo tempo, não cometamos o erro de tornar Portugal num país com identidade fictícia em troco de um futuro que não queremos.
É inevitável que o progresso chegue a Portugal, para mudar o país de uma vez e para sempre. Aprendamos, por isso, a conduzi-lo.