Science fiction, double feature picture show

(Um pequeno aviso ao leitor. O texto que se segue contém – algures ali para o meio – algumas palavras capazes de ferir os mais sensíveis. Vá, há para aí uns palavrões. Mas estão em inglês, pelo que não deve haver grande mal)

 

Let there be lips!

Eis um exercício de imaginação. Tente-se imaginar um filme que em 100 minutos inclui o seguinte: uma paródia dos filmes de Frankenstein – tanto os mais sérios, com Boris Karlof, como os que são, eles próprios, paródias, como o Young Frankenstein (Mel Brooks, 1974). Isto é representado por um personagem atraente chamado Rocky, que é um pugilista criado para satisfação dos desejos carnais do seu criador, um cientista louco travesti vindo de Transsexual, Transylvania.

Junte-se a isto uma paródia dos filmes dos anos 50 sobre invasão extraterrestre (afinal de contas, o cientista louco vem da Transylvania); e mais uma paródia ainda (sim, ainda estou a falar sobre o mesmo filme) da ficção científica de temática nuclear.

Mais elementos que devem ser adicionados: um rufia chamado Eddie, congelado numa arca frigorífica e que ao descongelar vê-se que é o Meatloaf (lembram-se dele?) disfarçado de motard louco por rock-n-roll; uma história de amor frágil (o filme gira em torno da relação palerma de dois palermas que se amam palermamente); um conflito intergaláctico com direito a lasers – UAU! Lasers!; um espectáculo musical que inclui um número coreográfico numa piscina (Bathing Beauty, George Kidney, 1944. Isto é suspeito…), tudo patrocinado pela defunta RKO.

Para rematar, e se o leitor ainda for capaz de conceber um filme com todos estes detalhes, imagine-se o que está descrito acima bem embrulhado por um musical de travestismo ardente, apaixonado e, bem… sexy.

E canibal! Sexy e canibal! Pois é… canibalismo. Também há canibalismo.

Ah! O cenário? Um castelo vitoriano decrépito que é uma nave espacial estacionada no campo.

Se o leitor conseguiu juntar todos estes elementos num filme que, sem coerência nenhuma, até faz sentido, e se o leitor conseguiu recriar, nesse filme, a atmosfera mais estapafúrdia de terror musical que só os anos 70 podiam oferecer, está de parabéns! Acabou de recriar na sua mente o filme que está há mais tempo em exibição, de sempre – 40 anos ininterruptos, e ainda a esgotar salas de cinema em várias cidades dos EUA pelo menos uma vez por mês. O filme é o estranho, misterioso, absurdo, fantástico, ridículo, tão-mau-que-é-bom e, claro, sexy The Rocky Horror Picture Show.

Como o leitor deve ter percebido pela introdução deste texto, o The Rocky Horror Picture Show cabe numa categoria que é só sua. O filme, dirigido por Jim Sharman, foi baseado no musical da Brodway, The Rocky Horror Show, escrito e encenado por Richard O’Brien, que participou na adaptação do musical para o cinema. O filme estreou em 1975 e desde então nunca deixou de ser exibido, tornando-se num fenómeno cultural unicamente americano.

A primeira vez que “ouvi” falar do Rocky Horror foi através de outro filme: Fame (FAME! I’m gonna live forever. Sim, sim! Esse mesmo!), o drama musical de Alan Parker que marcou o início dos anos 80 e que, juntamente com The Warriors (Walter Hill, 1979), se tornou um clássico como uma manifestação da energia, ambição, entusiasmo, luta por afirmação social, paixão e drama dos jovens nos bombásticos 80. Ainda pelos critérios de hoje ambos os filmes são bastante recomendáveis.

Mas voltemos ao The Rocky Horror Picture Show.

Como é, afinal, uma sessão do Rocky Horror?

Primeiro temos de considerar dois pontos: é um filme apenas exibido em sessões da meia-noite de sexta e ou sábado, pelo que é fácil imaginar o “tipo de energia” que o público leva consigo; não é um filme que se veja passivamente: o bom comportamento que temos no cinema – sentar, calar, ouvir e ver em silêncio – é precisamente o que se deve evitar. Nem é aconselhável! E, repita-se, é sexta-feira à noite!

Então passa-se assim: enquanto o filme é projectado, uma companhia de teatro vai recreando pela sala o que se vai passando na tela – uma paródia sobre uma paródia feita de pequenas paródias. Depois, e aqui é que a coisa fica interessante, entra o público. Sim, sim, o público. É suposto libertarem-se as energias chamando asshole ao herói, o idiota do Brad, assim como fazer o mesmo sobre a heroína, a sonsa Janet (interpretada por Susan Sarandon), que se diz entre a audiência ser uma slut e uma bitch.

A participação do filme não se fica pelos insultos, claro. Há praticamente um guião paralelo de piadas, observações, diálogos, canções e ainda mais insultos que o público grita, canta ou cospe conforme a cena ou o humor do espectador. Há mesmo várias cenas que têm vários destes diálogos paralelos que, ditos todos ao mesmo tempo, só acrescentam há tremenda balbúrdia da meia-noite. Na primeira parte, por rexemplo – antes de Rocky, o grande campeão do filme, nascer da caldeira multicolorida do Dr. Frank-N-Furter (uma actuação brilhante de Tim Curry) – há Time Warp. Nesta cena, o público levanta-se da cadeira e acompanha os actores do filme e do teatro numa dança de grupo. O filme inclui instruções de dança dadas por um criminalista (eu sei, isto não faz sentido), pelo que não há motivos para não o fazer. E há ainda muitas mais cenas –  praticamente todo o filme – em que a intervenção do público é esperada. Por exemplo, quando Brad (asshole!) and Janet (slut!) saem da igreja depois de casarem, atira-se arroz contra a tela; quando chove, a audiência abriga-se com jornais (como faz a estúpida da Janet) contra bisnagas que simulam a chuva que cai no filme; se o Riff Raff (assistente do Dr. Frank-N-Furter, e interpretado pelo próprio Richard O’Brien) aparece a uma janela, o público grita, em horror, e diz que ficou cego; é também nesta parte que se atiram glow sticks quando as personagens cantam “there’s a light!”; se há uma festa no filme devem atirar-se confetti; quando o Dr. Scott entra em cena e Brad (asshole!) exclama “Great Scott!” lá se atira papel higiénico marca Scott pelo ar; quando o Dr. Frank-N-Furter canta melancolicamente “cards for sorrow, cards for pain”, deve-se partilhar da sua dor e lançar cartas de jogo pelo ar. Portanto, se estiver a planear ir ver o Rocky Horror aconselho a que leve: arroz; um jornal; uma bisnaga; glow sticks; chapéus e apitos de festa; confetti; papel higiénico, de preferência marca Scott e cartas de jogo. Alguns cinemas permitem atirar torradas.

Como o leitor pode imaginar, o filme exige imensa energia – o mesmo tipo de energia que se leva para uma festa de sexta à noite. Na verdade, não se o Rocky Horror Picture Show: grita-se, dança-se, ri-se, insulta-se, descarregam-se as energias contra o Rocky Horror Picture Show. Mais do que um filme é uma espécie de festa coreografada, em que todos sabem exactamente o que fazer para se divertirem.

No contexto das grandes cidades americanas, o filme é como um ritual selvagem das tribos modernas. Note-se que o principal interesse em ir a uma sessão do Rocky Horror não é passar um bom bocado a apreciar uma obra cinematográfica. Em primeiro lugar, é impossível perceber o filme: há demasiadas coisas a acontecerem em simultâneo. E em segundo, o filme é terrivelmente mau, isto é, enquanto obra artística é um desastre. O grande interesse está, portanto, na satisfação de uma necessidade de ligação a um grupo de semelhantes e que partilham um interesse comum e, provavelmente, uma visão mais ou menos aproximada da vida na cidade. Essa ligação é feita através de um ritual em que todos conhecem bem o seu papel e em que há a noção partilhada de que, por breves momentos, todos sentem, pensam e querem o mesmo. Além disso, os rituais acabam por ter um efeito “libertador”, precisamente por assegurarem a cada participante que o grupo, como um todo, é coeso e que nada mudou.

No filme Fame, por exemplo, há uma cena que ilustra de forma inteligente a importância dos rituais nas cidades. Nessa cena, Doris, aluna de Drama, aceita o convite de Ralph para uma sessão do Rocky Horror, muito popular entre os adolescentes de Midtown Manhattan. Essa sessão acaba por se revelar essencial para o crescimento da personagem de Doris: sob o efeito de uma certa erva muito doce e de fumo acre, Doris acaba por se juntar à dança do Time Warp, teatralizada no palco em que o filme está a ser exibido. Após essa noite, Doris apercebe-se de que é mais do que Doris, a tímida aluna de Drama; é também Doris “Dominique Dupont” Finsecker, a Actriz. Escrito de forma tão sucinta pode parecer ridículo, mas consideremos todo o contexto do filme que leva a este momento. A intenção de Alan Parker era ilustrar a passagem de Doris da infância para a vida adulta através de um ritual alucinante: a adolescência. A participação no  Rocky é uma espécie de ritual de iniciação cujo significado Parker soube captar na perfeição: uma metáfora sobre crescimento, iluminação e súbito reconhecimento da identidade de Doris enquanto uma jovem adulta.

Na selva decadente que era Manhattan nos anos 80, por entre a alienação das gerações anteriores (veja-se Taxi Driver, Martin Scorsese, 1976) os jovens procuravam o seu nicho e uma tribo que partilhasse os mesmos ideais contra uma sociedade decadente e sem promessas de futuro. O Rocky Horror, The Warriors, Taxi Driver e Fame, com o seu poder de afirmação, surgiram pois como um ritual de passagem modernizado numa sociedade que parecia ter perdido o significado de todo e qualquer ritual.

Naturalmente sempre houve rituais, e muitos deles sob a forma de festas. Quando os meus avós eram jovens, por exemplo, faziam-se festas em torno do milho-rei. Essas festas eram um ritual. Os festejos em torno de um santo são outro ritual. As missas, por exemplo, servem, entre outras coisas, o propósito de reforçar a coesão da comunidade a partir da participação num ritual altamente padronizado e sem desvios à narrativa estabelecida.

Os campos deram lugar às cidades. Acompanhado essa mudança, os rituais mais tribais foram substituídos por equivalentes contextualizados na vida das grandes metrópoles. As festas do milho deram lugar aos concertos. As procissões e peregrinações foram substituídas por festivais. As missas, essas, foram ficando. Os meus avós vão à missa; eu vou ao Rocky Horror.

O objectivo é o mesmo.