Certas vezes, até numa paisagem natural se detecta a mão do Homem.
Arquitectura está em todo o lado. Para qualquer lugar que possamos olhar, ela está lá. Ela existe porque foi o Homem que a criou.
Arquitectura é o mundo onde vivemos. É o mundo criado pelo Homem.
A função do arquitecto é pensar nesse lugar, onde todos nós vivemos, idealizá-lo e concebê-lo, de acordo com as necessidades de cada comunidade.
Um lugar é um espaço habitado.
Um espaço habitado é a adaptação daquilo que nos distingue como pessoas a uma área e volume livre pré-existentes. Essa adaptação relaciona-se com factores antropológicos; sociais, políticos, históricos, naturais, geográficos, climatéricos…
“O lugar em que a obra acontece, esse grande objecto, é parte do efeito, e,
em geral, pode-se vê-lo como o primeiro e mais importante factor a
determinar os acontecimentos (o segundo eram os materiais disponíveis e o
terceiro, os intérpretes).” 1
Nas Artes e Ofícios do Espetáculo, existe o Espetáculo (performance), o Espetáculo (total), o Lugar (Pré-existente) e o Lugar (Cenário). Chamemos-lhes PER, para o Espetáculo performance, ESP para o total, LUG para o Lugar pré-existente e CEN para o Lugar cenário.
A PER é a performance apresentada, no seu verdadeiro sentido – a actuação representada por um ou mais indivíduos ou até por animais ou coisas;
O ESP é o conjunto de elementos apresentados, desde a PER ao CEN. Todos os elementos vistos, ouvidos ou sentidos pelo público são tidos como um único produto final apresentado;
O LUG é um local, em princípio ele mesmo já lugar por ter sido intervencionado de alguma maneira pelo Homem, onde existem as condições mínimas para se apresentar um espetáculo (ESP), normalmente um espaço livre;
O CEN é um lugar num lugar criado propositadamente com o intuito de servir de cenário para a PER apresentada – é o espaço desenhado associado à performance, criando o ambiente mais apropriado para aquilo que o produto final pretende transmitir.
A actuação (PER) e o lugar (CEN) onde esta acontece deveriam sempre, ser criados como um produto único, que se relacionassem um com o outro, sem nunca se poderem separar.
Não acredito em PER sem CEN. Mesmo que não se deseje ou não se tome como prioridade, esquecendo-o até, o lugar onde a obra acontece, existirá sempre. É praticamente impossível, ou muito improvável, apresentar uma peça num não-lugar. Neste contexto, até um não-lugar é um lugar.
Desta maneira, uma PER sem o cuidado de um CEN, será, a meu ver, mais pobre. Agora, há muitas formas de criar um lugar de espetáculo. Simplesmente com uma pedra no meio do caminho se poderá fazer um lugar. O mais importante é que a “pedra” seja intencional. O mais importante é existir essa preocupação e tentar associá-la da melhor maneira possível à performance.
Neste seguimento, parecerá que, apesar da PER e CEN em conjunto, o segundo vem depois do primeiro – mas não necessariamente.
Isto é, o parágrafo anterior poderá dar a entender que o lugar devesse se associar à actuação a apresentar, sendo este criado posteriormente a esta que existiria a priori, mas não terá que ser dessa forma.
São várias as maneiras de criar um ESP: poderá partir da PER que por sua vez já partirá de outros estímulos, e só depois ser pensado o lugar onde esta se pode inserir; poderá partir do CEN que segue dois formatos distintos (explicarei a seguir) que depois de idealizado compõe a PER, se assim se pretender; e como muita coisa na nossa vida, sendo os dois produzidos simultaneamente e em conjunto, o equilíbrio significará a melhor opção adoptada.
O CEN – lugar de actuação – sendo ele a base inicial de uma peça final, sendo ele o resultado de uma performance pré-concebida, sendo ele desenvolvido em conjunto com a PER, como que um único produto, pode ser criado em dois formatos diferentes, em relação ao lugar (LUG).
Basicamente, o CEN pode, por um lado, ser produzido apropriando-se do LUG existente, ou, por outro lado, virando-lhe costas e tornar-se independente, não estabelecendo nenhuma relação com ele.
Normalmente, o que se verifica é a primeira opção essencialmente em espaços exteriores, que diferem constantemente dependendo do LUG onde a peça for apresentada, e a segunda opção em espaço interiores, geralmente idênticos entre si.
Verificando tal constatação, devo criticá-la construtivamente, pois, de certa forma, acho que o que acontece neste momento não é propriamente negativo, mas por outro lado, penso que rompendo este padrão se poderiam fazer coisas muito interessantes: imaginemos o inverso do usual (principalmente referindo-me ao formato interior) – uma maior apropriação dos lugares existentes, habitualmente teatros (auditórios). No exterior, quando o LUG não é apropriado, já existem dispositivos que lhes viram as costas, como por exemplo, o chapiteau do Circo.
Esta reviravolta de apropriações ou o inverso, em interior e exterior, poderia oferecer uma maior diversidade e qualidade, não só aos cenários propriamente ditos, mas decerto, à totalidade do espetáculo, se houvesse pois, uma comunicação entre todo o conteúdo do espetáculo.
O processo de apropriação dos LUG levanta ainda outras possibilidades de construção do espetáculo/produto final a ser apresentado, pois distingue-se como um processo específico para cada LUGar.
Tendo cada LUG características distintas, o projecto do espetáculo teria que ser pensado especificamente para cada um.
Se a peça final partisse das especificidades do lugar, esta seria diferente em cada local aonde fosse. Se nascesse de uma performance isolada, o cenário teria que se adaptar a cada lugar podendo isso alterar todo o espetáculo.
Tenho a sensação, em muitos casos, que o lugar da performance, formalizado muitas vezes num cenário concreto, é resultante de uma peça existente, ou até de uma performance já ensaiada.
É por esse motivo que reforço a importância do lugar num espetáculo (ESP), pois considero-o tão essencial como a própria PER e acho que também pode ser mote de criação de um espetáculo.
É o lugar que, em conexão com a PER, concebe à obra um ambiente, sensações, catarse – tal como a arquitectura do mundo onde vivemos, criada por cada rua que gira e nos deixa curiosos por o que haverá a seguir, por uma escala que nos tira o fôlego, por um átrio que nos dá arrepios, pelo chão que estala ou que faz bem aos pés, pelo aperto de um tecto baixo, por uma paisagem emoldurada, como um quadro pendurado, pelo desenho de uma sombra, pela textura de um material.
É verdade que são as pessoas que fazem a “cidade” (o arquitecto só a concebe), mas fazem-na porque precisam dela, e esta, em retorno, mantem-nas vivas.
Sem Lugares, viveríamos num espaço vazio, sem vida.
Mesmo uma cidade fantasma é um encanto e só o é se for sentida por alguém.
Se a PER e a CEN forem encaradas como um único objecto não separando espaço e materialidade de actos e sentimentos, o resultado provocará sensações mútuas ao público e o Espetáculo resultará numa simbiose mecânica, como a estrutura de um relógio, cujas peças se engatam umas nas outras, e outras fazem umas funcionar, correndo fluidamente.
A CENografia existe em qualquer arte e ofício do espetáculo, como o Teatro, a Música, a Dança ou o Circo. E em qualquer um deles, o lugar (CEN) deve ser considerado um elemento fulcral e mote de construção de um espetáculo.
“Como já foi referido, o circo [o teatro, a música, a dança, …], apesar de seguir modestamente as regras de apropriação aos lugares onde se instala, não tira grande partido das características e potencialidades do local. Todos os lugares possuem propriedades muito distintas e isso poderia ser precisamente o motivo de relevância artística do circo [ou do teatro, da música, da dança, …].
O que se sugere é a captação das qualidades e potencialidades do lugar onde se instala e a apropriação destas de um modo mais criativo e inovador. As características de um lugar podem ser utilizadas como matéria ou enquadramento do próprio espectáculo. Podem fazer parte do espectáculo ou contribuir para a alteração do mesmo, pela maneira como este é apresentado ou pela maneira como é observado.” 2
1 OLDENBURG, Claes, “O lugar como elemento da performance” in GOLDBERG, Roselee (Org.), A arte da performance: do futurismo ao presente, Lisboa: Orfeu Negro, 1º edição, 2007, p.169
2 CAPA, Tomé, O circo em cada lugar, um lugar para o Circo – Dissertação de Mestrado, Guimarães: Universidade do Minho, 2013