Uma multidão infindável de lusitanos (para aí umas quatro pessoas) quis saber da minha opinião. Pois bem, aqui fica.
Devo começar por dizer que não vi o jogo da final. Moro num quarto andar sem elevador e estava algum calor. As minhas saídas à rua são, portanto, sempre muito bem calculadas à razão de esforço / benefício. A opção óbvia, em sintonia com a esposa, foi, então, ficar em casa com os gatos. Os gatos ensinam-nos bem mais do que um jogo de futebol, e, aliás, bem provocados, dão-nos por vezes espectáculos com bolas de guizos bem mais fascinantes e atléticos.
Quanto à guinada patrioteira que percorreu a espinha dorsal do país, permitam-me que cite uma frase do superlativo Jorge Luís Borges, que um amigo sem Facebook (ainda há dos bons!) me enviou hoje: «O facto de 11 jogadores argentinos terem vencido 11 jogadores holandeses não quer dizer que tenhamos vencido a Holanda. Aliás, para quê vencer a Holanda? Por mim, não quero vencer Erasmo.» Para que quero eu vencer a França? Um país que deu tanto à minha família e que me legou tanto intelectualmente? Tal como Borges, não pensaria hoje da mesma maneira se tivesse derrotado Voltaire, Diderot, Montaigne ou Flaubert. Eu não quero derrotar a França de maneira nenhuma! E se quiserem mais uma: o homem que fundou Portugal (o Henrique, não o Henriques) nasceu em Dijon, e o seu filho rei é de acreditar que o sangue dele tinha.
Posto isto, acho legítimo que as pessoas tenham as suas distracções e, se for o caso de que a alegria seja levada ao limite por elas, que assim seja. Nada contra e fico contente.
Eu também gosto muito de Portugal e não preciso da bola para fazer valer esse meu cuidado pelo meu país. Gosto de cuidar a nossa língua, por exemplo. Gostaria de ver, em frente à Assembleia da República, aquela gente toda que estava na Alameda (Afonso Henriques, já agora. Repito: meio francês), em frente ao Técnico — bastava só aquele bocadinho, já nem falo do resto da cidade de Lisboa — gostaria de ver, dizia, aquela gente toda que lá estava na Alameda em frente a São Bento, a barafustar contra o matricídio que representa o Acordo Ortográfico de 1990, para dar um exemplo de muitos. Aí sim, que orgulho teria eu do meu povo! Juro-vos, aqui mesmo, que se o Acordo Ortográfico fosse derrotado, mergulharia nu no rio Lima. Numa fonte pública não, tenho alguma vergonha dessas coisas.
E posso continuar a demonstrar-vos, já agora, como gosto de Portugal. Por exemplo, não acho que haja nada mais bonito do que uma folha de bacalhau a secar. Uma folha de bacalhau pendurada numa mercearia é bem mais bonita do que uma finta do Cristiano Ronaldo. Um prato de bons rojões com verde tinto da Barca dá mil a zero ao golo do Éder. Olhar o Atlântico com saudades do Mediterrâneo a partir de Cacelha Velha, Castro Marim ou Olhão emociona-me muito mais do que qualquer estádio cheio. Uma alva ermida barroca sobranceira ao Douro excede em muito o brilho de uma taça de prata. Eu penso que estas coisas são mais importantes do que os feitos das pessoas. A verdadeira beleza de Portugal nem sequer está nos seus heróis. É certo que tivemos alguns, mas o nosso país é a mais pura construção que existe na Europa das coisas simples, dos sem nome, das pequenas maravilhas construídas nos lugares certos. É por isso que nos chateia sobremaneira ver o potencial deste Finisterra escoar-se-nos diariamente para o sempiterno mar oceano. Não somos, nem por um momento que seja, melhores ou piores do que os outros — somos filhos deste lugar por um acaso de ADN, e faremos sempre muito bem em nos lembrarmos disso mesmo, pois já o esquecemos no passado várias vezes.
Há ainda o facto, contrário ao que tenho lido por aí, de que aquela selecção, ao jogar em equipa, não representa, de todo, os portugueses. Que sociedade somos nós, quando jogamos quase sempre só para nós mesmos? Quando estamos sempre à espera que surja, ao dobrar a próxima esquina, aquele que nos quer queimar? Em equipa, pois, contem-me histórias…
Acho que o único mérito daquela vitória foi mostrar um povo que não existe. A reacção foi de espanto, porque naquele campo não estávamos nós, mas aquilo que gostaríamos de ser: unidos em prol do bem comum; estrategas não dependentes do mítico desenrascanço; tolerantes na diferença; combativos e não derrotistas ao primeiro fracasso…
Mas voltemos ao bacalhau — podíamos voltar «à vaca fria», mas a Posta à Mirandesa quer-se sempre a sair quentinha… —; dizia eu do bacalhau: a minha avó trabalhou duramente na seca da nossa múmia piscícola, e, apesar de nos ter deixado era eu miúdo, nunca mais me esqueci das suas expressões de desdém enquanto o meu avô ouvia os relatos no seu velho rádio. Uma vez disse-me, apontando para o transístor em cima dos Totobolas: «Nós, às vezes, lá na seca, trabalhávamos à porfia, porque quem trabalhasse mais, naqueles dias de maior canseira, ganhava umas postitas para levar para casa. Olha, filho, e era como um jogo em equipas, nós lá, todas: umas de um lado a estender; outras do outro a carregar; outras em cima a salgar… Mas no fim, quem ganhava, enchia a barriguinha.» Eu teria para aí uns 11 anos, perdoem-me que posso ter falhado algumas palavras; mas hoje, que tenho 34, já consigo perceber a quem o futebol enche a barriga e, sobretudo, a quem o futebol vai servindo. Reparem, por exemplo, neste naco de prosa no Diário de Notícias: «A seleção (sic.) assomou-se, juntamente com o Presidente da República, à varanda dos jardins do Palácio de Belém com vista para a praça, da qual ouviram o hino tocado pela banda da GNR.» Não fosse eu ter sacado isto de um site e juraria que estava a ler o Diário de Notícias de 1916! Calma, já vos passo o link…
Podem-me criticar a visão rural e simplista da «barriguinha cheia», que eu não me importo. Um Presidente de Câmara de Faro, aqui há uns anos, disse a quem o quis ouvir que «a cultura não enche a barriga», e eu percebi-o no meu nojo. Citando um dos heróis do momento: «Que se foda!». Um bom entendedor facilmente chegará ao que quero dizer. Para os outros, eu explico, pois não sou homem para usar este tipo de análise «como quem dá cá aquela palha». Ah!, as nossas expressões!… O sentido que quis imprimir não pertence ao plano do individual, mas ao do colectivo. Barrigas «há muitas», mas os «palermas» somos quase sempre nós — panis et circenses, a fórmula é velha, está em latim e tudo. Se não concordam, podem ir a Fátima acompanhar o nosso Presidente da República. Não estou a brincar: consta que já está a preparar viagem de agradecimento. Falta saber se como cidadão, se como Presidente da laica República Portuguesa. Falta ainda saber se, na sua pia caminhada peregrina, leva consigo alguma fadista. Só não me peçam para adivinhar.
Eu, se me permitem, estou fora-de-jogo.