O silêncio da aldeia

Tens em troca /órfãos e órfãs / tens campos de solidão
tens mães que não têm filhos / filhos que não têm pai

Cantar da Emigração, de Rosalia de Castro e interpretado por Isabel Silvestre

 

O castelo de Sistelo – pintado de branco, telhado novo, janelas com caixilho moderno em alumínio de mau gosto e enquadrado na pitoresca e bonita aldeia com o mesmo nome – faz uma bela vista ao longe, e também ao perto. Tem o ar solene e nobre de um palácio acastelado, ao mesmo tempo que transmite a serenidade e descontração de uma casa de campo, que foi chamada de “castelo” apenas por ter duas pequenas torres coroadas por ameias. No parapeito de uma colina íngreme que se debruça no vale da nascente do rio Vez, o pequenino castelo branco aninha-se de encontro às casas humildes e à igreja singela de granito, arranjando-se a aldeia como um bouquet no meio da serra, fazendo as delícias de quem vem de longe e gosta de fotografar.

O castelo de Sistelo tem dentro das paredes algo que não devemos esquecer: o silêncio da aldeia que o guarda. Acontece que o castelo, apesar das imaculadas paredes brancas e do impecável telhado, está vazio. Quanto muito guarda algumas memórias e, acreditando nesta e naquela história do folclore, o fantasma de uma princesa que se deixou morrer por amor ou um espírito descontente que ficou a rugar pragas aos vivos. Para todos os efeitos, o castelo é um cofre vazio, julgando pelo que se vê do exterior.

E que tipo de mensagem, se alguma, podemos nós tirar sobre um castelo vazio e silencioso, pintado de fresco, a destacar-se por entre as pequeninas casinhas de pedra de uma aldeia tão isolada, num vale tão secreto do Alto Minho?

Poderíamos criar inúmeras histórias, imagens e fantasias em torno de um castelo fechado há muitas décadas e da sua pequena aldeia, ambos debruçados nos precipícios íngremes de um vale recôndito, onde corre um ribeiro melancólico e onde as noites e a madrugada se cobrem de um nevoeiro espesso e pesado que traz consigo o uivar dos lobos. Um cenário gótico e romântico, certamente. Quase que faz lembrar os mistérios noturnos da Serra do Barroso em “O Barão”, de Branquinho da Fonseca, ou as aldeias supersticiosas de Aquilino Ribeiro e Miguel Torga,  ou ainda, para quem aprecia literatura estrangeira, “A queda da casa de Usher”, de Poe e, exemplo extremo, “Os ratos nas paredes”, de H.P. Lovecraft.

Contudo, a bucólica e sossegada aldeia de Sistelo, coroada com o seu castelo branco, também nos pode fazer pensar no nosso próprio tempo e nos problemas e questões subjacentes. Acontece que aldeias como Sistelo, Lindoso, Grijó, Tibo, Peneda, Gralheira (Serra de Montemuro), Piódão (Serra do Açor), Monsanto e Penha Garcia (Idanha-a-Nova), entre muitas, muitas outras povoações, que incluem aldeias, vilas e até cidades, partilham algo que parece estranho a quem vive na agitação citadina mas que, naquelas aldeias isoladas, se tornou um lembrete constante do seu isolamento, da fuga das suas gentes e de um futuro lento e triste. As aldeias isoladas e o interior de Portugal partilham o silêncio guardado no castelo de Sistelo. É um silêncio pesado e austero que, em parte, deriva da orgânica das populações e da sua história – pense-se na desertificação de povoações do Interior devido à migração para as cidades do litoral, ou no abandono de terras do Alto Minho com a emigração – e, por outro lado, é um silêncio também imposto pelo esquecimento ou negligência por parte do resto do país que, por vezes, se esquece de promover o seu interior como uma parte funcional e essencial. Certamente não podemos esquecer-nos de que algumas destas aldeias beneficiam de um novo folgo com o turismo (penso no Piódão e Monsanto), mas não devemos ignorar que a maior parte se vê adormecer lentamente no silêncio de uma população maioritariamente idosa e cada vez mais isolada.

Mas a aldeia de Sistelo é só uma aldeia, com os problemas “modernos” próprios de uma aldeia. Contudo, não deixa de ser um exemplo. E torna-se preocupante que seja um exemplo de muitas outras aldeias, mas ainda mais preocupante quando o tomamos como um exemplo, em menor escala, de todo o país.

Portugal, aparentemente habituado à emigração que sai mas volta e a um espírito nacional que se estende para lá das fronteiras no mapa, terá de encarar, mais tarde ou mais cedo, o problema do silêncio, tal como já acontece nas suas aldeias. Mas olhemos para este assunto com as devidas proporções: o país não ficará completamente deserto, sem absolutamente criança nenhuma e apenas com idosos que não conhecem muito mais do que as serras que os rodeiam e o seu modo de vida profundamente embebido das tradições mais remotas (um bom exemplo, para os curiosos que queiram conhecer estas gentes e as suas histórias, são as aldeias do Grijó, no concelho de Arcos de Valdevez e a aldeia de Jerusalém de S. Romeu, em Mirandela). Não, para um país esse seria um cenário demasiado extremista e pouco provável. Ainda assim devemos estar atentos ao problema da sucessão das gerações e o que elas fazem no nosso país. Certamente não queremos que Portugal se torne uma espécie de Sistelo, com a Torre de Belém muito branca, limpa e serena nas margens do Tejo mas tão silenciosa como o país deserto que traz atrás.

As gerações que atualmente formam a força laboral do país preocupam-se, obviamente, com os problemas iminentes que as afetam e com o futuro que querem assegurar. Como tem ocorrido desde 2008 os grandes problemas a serem resolvidos são a crise financeira, o fomento da economia, da industria e do mercado e a sustentabilidade imediata dos sistemas social e bancário (talvez possamos acrescentar uma crise democrática?). Contudo, na árdua tarefa de resolvermos estas questões, esquecemo-nos de uma crise muito maior e mais grave que Portugal, seguindo também a tendência ocidental, enfrentará dentro de poucas décadas: uma crise demográfica, um “silêncio” geracional.

É impossível ignorar que muitos dos mais jovens e qualificados se movem para o estrangeiro na busca legítima de uma vida melhor, tal como o fizeram gerações passadas. Entretanto, a economia precária e a reboque tornam difícil a renovação geracional dentro de fronteiras. A desequilibrar o balanço entre jovens e idosos temos também o retorno das gerações da diáspora do século passado. Caso não consigamos renovar a nossa árvore demográfica, corremos o risco de Portugal se tornar um país “silencioso”, com uma população idosa e isolada e, com a pressão sobre os sistemas de segurança social, tendencialmente mais pobre e doente. Uma grande diferença entre estes novos idosos e os que habitam atualmente as nossas aldeias será, por exemplo, o acesso ilimitado à informação e a ligação cada vez mais orgânica à rede. Esperemos que a solidão não seja algo em comum…

Apesar de tudo, Portugal encontrará uma solução, seja ela planeada, ao acaso ou “desenrascada”, à boa maneira lusitana. A entrada de imigrantes no país pode ser vista como um sinal positivo nestas questões e o fomento do turismo poderá ajudar na parte económica. Entretanto, façamos uma visita ao Sistelo. Deixemo-nos encantar pelos seus socalcos verdes e pela corrente cristalina do rio Vez. Conversemos com os seus habitantes e ouçamos as suas histórias de vida difícil e trabalho de sol a sol. Ouçamos o que nos diz uma geração de um passado que já só vive nas paredes de granito das suas casas e no sino melancólico da sua igreja. O castelo de Sistelo foi mandado erguer pelo seu Visconde, um emigrante da terra no Brasil. Pensemos nisso também. E, acima de tudo, façamos do silêncio da aldeia o nosso deleite e a nossa lição: não nos tornemos um castelo vazio que faz das memórias paredes e guarda em si o silêncio de um povo.