Há muitos assuntos sérios, de grande importância e delicadeza, que requerem a nossa atenção. A tomada de posse de Donald Trump como Presidente dos EUA; a desastrosa guerra na Síria; o desespero dos refugiados; a saída do Reino Unido da União Europeia; a subida da extrema direita; a nova híper-sensibilidade da esquerda; a fome no Sudão do Sul; o potencial renovar da crise de 2008; a propagação do terrorismo; a crise humanitária na Serra Leoa, Yemen e Nigéria; os catastróficos níveis de poluição; o risco de uma guerra nuclear.
Por outro lado, temos também assuntos igualmente sérios que requerem a nossa atenção por outras razões. O desenvolvimento de novas ferramentas de manipulação genética, com um enorme potencial terapêutico; a luta constante por melhores vacinas; o progresso galopante da inteligência artificial; a vontade em se avançar com a colonização de Marte; a exploração, de uma beleza ao mesmo tempo inspiradora e aterradora, do cosmos e do fundo dos oceanos; transportes mais rápidos e seguros, que certamente tornam o Mundo mais pequeno e trazem as pessoas mais próximas; a ligação de todos no mundo virtual; a criação de novas realidades simuladas, por vezes mais inspiradoras do que a realidade que nos rodeia; o avanço tecnológico que, assim, atenua a linha entre realidade e simulação e que define novas e aparentemente ilimitadas fronteiras para a nossa velha e complicada História.
Todos estes assuntos precisam da nossa imediata e completa atenção. Uns pela urgência e gravidade; outros pelas complicadas questões que trazem para o nossa futuro próximo e a longo prazo. São, sem dúvida, assuntos de extrema importância: graves, densos, complexos, sensíveis, exigentes, extenuantes, inesgotáveis, de linhas dúbias e perspectivas tão diversas como os que os interpretam. Esgotam jornais, livros e basicamente qualquer meio de comunicação. Grandes problemas, grandes preocupações e grandes debates.
A tudo isto juntemos os problemas bem mais imediatos do quotidiano: contas; exames médicos; pagar a casa; pagar o empréstimo; sucesso no trabalho; progresso na carreira; as constantes preocupações familiares; problemas de saúde… Enchem os nossos cérebros e pesam sobre o nossa dia-a-dia.
No entanto, eis algo tão complicadamente simples: o dia-a-dia. Por entre todo o nevoeiro e ruído dos grandes temas e dos problemas pessoais, temos sempre, em nosso socorro, a simplicidade do quotidiano. Haverá arte em latas de sopa de tomate? Talvez. Como em todas as questões, depende do contexto e de quem vê.
Foi assim que, num destes dias, ao caminhar numa das ruas de Filadélfia e embrenhado em algo sério e cinzento que tinha lido num jornal e pensando no meu trabalho para esse dia, , fui surpreendido por um mural com cerca de três andares de altura e de enorme largura, e tão colorido como um Technicolor. Que espanto: tanta cor e tanta imensidão, no meio de tantos prédios desbotados!
Não deveria ter ficado tão surpreso. Filadélfia tem uma colecção de centenas de murais dispersos por toda a cidade, desde os bairros mais desenvolvidos às áreas mais pobres. Na verdade, a proliferação dos murais começou, precisamente, nas áreas mais degradadas da cidade.
Nos anos 70 e 80, tal como aconteceu em Detroit, o colapso da indústria redundou na falência de Filadélfia. Em consequência, a cidade tornou-se progressivamente mais pobre e, com a pobreza, vieram problemas sociais graves e difíceis de resolver. Como é natural, a degradação social reflectiu-se nas infraestruturas e nos edifícios, com enormes zonas industriais e os bairros circundantes em ruínas. Aliás, ainda hoje é possível perceber esse passado recente, ao passearmos pela Spring Garden Avenue ou pela Callow Hill Street, uma zona industrial no quadrante nordeste que alguns locais apelidaram de “Eraserhood”, por aí ter vivido o realizador David Lynch, que encontrou no desespero e ruína de Filadélfia a inspiração para o filme Eraserhead (1977). (Existe um mural dedicado ao realizador em Spring Garden Av.).
Com o decair dos bairros apareceram os graffiti. Assim, a já arruinada paisagem industrial – digna de um filme pós-apocalíptico – foi coberta por uma película ainda mais ruinosa de “lixo estético”, sendo que os graffiti (talvez nem seja o nome mais adequado) não passavam nessa altura de riscos e assinaturas toscas, sem tema ou motivação. Sendo os graffiti um reflexo da expressão da vida urbana – não consigo imaginar graffiti dignos desse nome em aldeias como o Soajo – os que cobriam as ruas de Filadélfia eram, mais uma vez, o reflexo de um “sítio doente, retorcido, violento, controlado pelo medo, decadente e degradado. A cidade mais doente [e] corrupta que se pode imaginar.”, como o pôs David Lynch numa entrevista. Ruína económica, social e estética: a Cidade do Amor Fraternal em putrefação.
Mas é em tempos de crise e desespero que se sabem os fortes e, por vezes, surgem as melhores ideias. O próprio David Lynch parece ter tirado inspiração do horror que o rodeava: “o medo, a insanidade, corrupção, sujidade, desespero, violência no ar eram motivos de beleza para mim. Deram-me imensas ideias… e uma certa forma de olhar as coisas” (entrevista de David Lynch aquando da sua visita em 2014 à Philadelphia Academy of Fine Arts, onde estudara). Esta capacidade de inspiração no quotidiano mais horrível é própria dos grandes artistas, e foram precisamente os artistas que, em conjunto com uma série de iniciativas de recuperação, decidiram começar a renovar a paisagem de Filadélfia, e trazer-lhe algo que tornasse o dia-a-dia dos seus habitantes mais colorido e com motivos de esperança.
São testemunho dessa capacidade para reagir e vontade de progredir – tão própria dos americanos – os Magic Gardens (“Jardins Mágicos”) e os murais. Enquanto que os Magic Gardens, criados pelo artista Isaiah Zagar, pretendiam trazer beleza ao sul de Filadélfia cobrindo os edifícios com espelhos, cacos de loiça e vidro e outros materiais reciclados (lembrando os ladrilhos que cobrem o Parque Guell, em Barcelona), a criação de murais foi ideia da artista Jane Golden que, integrando a Philadelphia Anti-Graffiti Network, pensou em cobrir as paredes dos edifícios com pinturas concebidas pelos mesmos graffiters que tinham degradado essas paredes. Apenas uma questão de dirigir vontades, digamos.
A criação dos primeiros murais nos anos 80 foi de tal forma eficaz na eliminação dos graffiti indesejados e, mais importante, na reestruturação das comunidades e da recuperação dos seus bairros, que a Câmara Municipal tornou esses murais património de interesse urbano, o que resultou não só na expansão dos murais (hoje existem mais de 3000!, incluindo um mural do português Vhils) como na criação de organizações dedicadas à sua preservação e divulgação (como a Mural Arts Philadelphia). Assim, Filadélfia, conhecida como Cidade do Amor Fraternal (Philadelphia = Phileo, “amar” + Adelphos “irmão”) é também conhecida como Cidade dos Murais.
Claro está, apesar da intensa gentrificação e da transformação numa cidade médica e de serviços, ainda existem muitos vestígios da “era da decadência”. Se se subir à torre da Câmara Municipal podem ver-se, por exemplo, na margem do rio Delaware, as ruínas da antiga central de carvão da Philadelphia Electric Company ou a Central de Vapor de Willow Street, abandonada nos anos 80 e tão carregada de asbestos que a sua recuperação ou demolição comportam preços impraticáveis. Por outro lado, a norte da Câmara, numa zona conhecida pela sua pobreza e fragilidade social, assistiu-se recentemente à inauguração do Divine Lorraine Hotel, abandonado durante décadas mas simbolizando hoje a transformação e novo fôlego da cidade.
Há muitas formas de inspirar. Muitas pequenas coisas que nos ajudam no dia-a-dia a não esquecer que, apesar de tudo o que possa estar mal, há sempre beleza à nossa volta. Ray e Charles Eames, criadores da cadeira com o mesmo nome, por vezes convidavam amigos para jantares em que a sobremesa consistia em observar a beleza simples de um arranjo de flores. Ainda que o arroz-doce da minha mãe ou um pudim Abade de Priscos do chefe Miguel sejam uma escolha bem mais apetecível, não podemos deixar de pensar que a beleza artística está, muitas vezes, nos objectos mais simples e banais. Sim, as latas de sopa… Filadélfia percebeu bem essa ideia, tornando as suas ruas numa imensa galeria de arte, para quem, num dia cinzento e com pensamentos complicados, precise de ver alguma cor. Lisboa também parece ter percebido isso. Os graffiti são arte ou vandalismo? Parece depender de como são feitos e em que contexto…
Todos precisamos de inspiração. As cidades precisam de cor. As pessoas precisam de cor. E, por estranho que pareça, por vezes a solução está nas mesmas paredes que caem à nossa volta.