Mais um

When you`re a child you learn there are three dimensions
Height, width and depth
Like a shoebox
Then later you hear there`s a fourth dimension
Time
Hmm
Then some say there can be five, six, seven…
I knock off work
Have a beer at the bar
I look down at the glass and feel glad
“Paterson” – Jim Jarmush

 

Parte I – O sono e o tempo

Começo o meu dia, todo o dia, cheio de energia e alegria.
Enquanto durmo, fico ansioso por acordar, e assim que acordo, levanto-me num pulo, um sorriso na cara e saio dançante.
Enquanto durmo, sonho com o que vou fazer e planeio cada segundo do meu dia. Entusiasmo-me e só me apetece levantar. Aliás, em vez de me concentrar no sono, estou a tê-lo pensando no que vem depois dele.
Mas preciso de dormir se não, não vivo.
É difícil fazer algo por obrigação, como dormir, só porque temos de o fazer. Torna-se doloroso e maçador.
Penso que, no tempo que estou a perder ali, poderia estar a fazer outras coisas, as minhas coisas. Até podia estar a dormir, mas com vontade, com gosto, como e quando eu quisesse, sem restrições de horário ou obrigatoriedade.
Sabendo isto, poderia perfeitamente mudar os meus hábitos de vida e dormir só quando quisesse, de vez em quando, nos horários que me apetecesse, ou até mesmo nem dormir.
É complicado. Todos se regem por estes horários e eu terei que me reger também se quero pertencer a esta sociedade. E quero.
Não sou um louco por não querer dormir. Eu sei que tenho de dormir; e eu gosto de dormir, mas à minha maneira. Era assim que eu queria: fechando e abrindo os olhos quando quisesse, sonhando sobre e como quisesse, às horas que quisesse, tendo perfeito conhecimento das consequências de tudo, quer para o bem, quer para o mal. Saberia que certas vezes poderia correr muito mal, ficando muito cansado e até com vontade de dormir por obrigação, mas outras vezes, poderia correr muito bem, recebendo todo o mérito e proveito do meu processo.
Uma das opções é mais segura: nada me poderá acontecer de mal. É sempre assim, como estipulado. Acordo todos os dias à mesma hora, percorro todos os dias o mesmo caminho, almoço todos os dias no mesmo sítio, faço todos os dias a mesma tarefa, vejo todos os dias as mesmas pessoas. Não falo com muita gente. Janto todos os dias à mesma hora. Deito-me todos os dias à mesma hora.
Poderia considerar esta série de acontecimentos uma coisa boa…

A outra opção é mais arriscada: tenho total liberdade para dirigir o meu tempo de dia e noite como quiser – e o que há melhor do que a liberdade?
Mas poderei sofrer consequências negativas de tal liberdade e vir a desorientar-me e ficar com muito sono de manhã.
Neste momento vivo a primeira opção. Mas quero a segunda, mesmo que seja um risco – pelo menos vivo.

O meu dia tem nove horas de acção e cinco e meia de descanso. Inicia às seis e meia da tarde e prolonga-se até às três e meia da manhã quando paro para descansar e termina finalmente às nove da manhã quando me levanto para dormir.

 

Parte II – Dia-a-dia

Quando digo nove horas até não parece mau. Ainda são algumas horas de acção por dia. Mas na verdade, estas nove horas não são realmente nove horas.
Desse tempo há uma grande parte que é dedicada a certas tarefas que são também obrigações, deixando de ser tempo livre, tempo meu, para fazer o que eu quero. Certamente é mais agradável estar a realizar estas tarefas do que a “dormir”, contudo, não é tempo que realmente aproveito.
Tenho desenvolvido, com o tempo, formas de gerir essas tarefas e esse tempo da melhor maneira possível, para o poder aproveitar. Mas ainda assim, continua tão curto…
Tento conciliar várias dessas tarefas ou encurtar algumas delas: Tomo banho menos vezes e ponho desodorizante nos pés para durar mais; Não faço a cama – já adoro chegar à noite e tê-la desfeita; Cozinho para mais do que uma refeição, dividindo a comida em tupperwares com etiquetas dos dias da semana; Enquanto cozinho, faço outras lides domésticas, como lavar a roupa e a louça ou aspirar enquanto descasco umas batatas e bato uns ovos – uso o menor número de utensílios possível, servindo um só garfo para todo o processo, desde as batatas aos ovos, levando-os este mesmo, posteriormente até à boca; Procuro aproveitar o tempo de percursos obrigatórios para pôr a conversa em dia, tratar de negócios, tomar o pequeno-almoço, cortar as unhas; e planeio-os bem, para não fazer desvios, quando preciso de me deslocar a vários sítios; Para “descansar”, visto a roupa que vou utilizar no dia seguinte, para não perder tempo de manhã.
As oito horas obrigatórias de “sono”, em primeiro lugar não são oito mas nove. Oito é um engano.
Nos mesmos termos que mencionei o não-tempo daquele tempo que se dedica a tarefas obrigatórias, que qualquer um precisa de fazer – cozinhar, comer, tomar banho, cagar, mijar, etc – a hora de almoço do período de “sono” é também uma hora não utilizada. São nove horas de “sono”.
Sei que dessas nove horas, apenas 50/70% são de “sono” profundo, e as restantes de distracções e percursos até chegar às profundezas, porém, é tempo que estamos agarrados à cama. Na verdade, esse período não profundo é pior ainda pois não é aproveitado por nenhuma das partes.
Como é frustrante andar às voltas na cama e estar apenas porque temos que estar, para “dormir”.

 

Parte III – O poeta

Costumam perguntar-me o que faço da vida. A minha resposta, por estar habituado, costuma estar associada à minha vida profissional – ao meu emprego particularmente – tal como outras pessoas fazem.
A vida à qual se refere essa pergunta é composta por unidades de tempo: ano, mês, semana, dia,…
Se a resposta a tal pergunta se baseia no meu emprego, ou é porque grande parte dessas unidades de tempo se gastam no trabalho, ou é porque não tenho mesmo nada de interessante para dizer (pobre de espírito), e aquilo que de mais entusiasmante posso contar é algo sobre o balcão da pastelaria que se está a desenhar no atelier, ou é porque, como grande parte do tempo é passado no trabalho, na menor parte nada de extraordinário acontece, possivelmente porque a passamos a fazer coisas que qualquer ser humano tem que fazer.
Descobri há pouco tempo que a minha resposta, no meu caso específico, nunca esteve correcta. Não “sou arquitecto”, ou “formado em arquitectura” ou “trabalho num atelier de arquitectura”; não sempre, mas certas vezes, eu sou poeta… e não é porque escrevo.
É porque olho para baixo, para o copo e sinto-me bem.
No trajecto que faço obrigatoriamente duas vezes todos os dias por vinte minutos, em algumas ocasiões, num passeio tão estreito e de tão pouco tráfego pedonal, três pessoas cruzam-se ao mesmo tempo criando uma linha perpendicular à linha da estrada.

Existe uma grande beleza nos detalhes banais do dia-a-dia. Detalhes que eu não gosto e quero que acabem já. Mas são detalhes harmoniosos, de harmonia geométrica, triste, irónica, negra, de cólera, inerte…

 

É só mais um. Mais um.

É só mais um dia.