Folclorizar a memória

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Aparentemente, no próximo final de semana, Guimarães terá uma oportunidade para “reviver a identidade dos primórdios da nacionalidade”. De acordo com as notícias espalhadas pela comunicação social que anunciam a quinta edição da Feira Afonsina, o objetivo desse evento é “recriar o ambiente social e económico da época do Condado Portucalense”. Entre outras atrações, é prometido “a todos os visitantes uma experiência inesquecível no tempo” ou “uma viagem até à época medieval”, assim como “um conjunto de experiências intensas e memórias inesquecíveis unindo a história, tradições, artesanato e a gastronomia vimaranenses.” Entre as diversas atividades oferecidas na edição passada, e que provavelmente se repetirão nesta, é possível experimentar refeições confeccionadas com técnicas e ingredientes da época, alugar ou comprar vestuário usados nos tempo medievais ou ter um treino militar de técnicas mais básicas com espada ou lança.

A organização promove a continuidade deste projeto com “o sucesso obtido nas edições anteriores”, de tal forma que, desde o ano passado, o evento foi “colado” ao feriado municipal, supostamente o dia mais importante da agenda concelhia. O vereador do pelouro também assume que “a cada ano o evento dá mais um passo rumo ao objectivo de se tornar o maior na vertente de recriação histórica”, conciliando a cultura, o património e o turismo. Segundo o mesmo, a Feira Afonsina é um evento que “ajudará a reforçar a importância da cidade em termos turísticos, históricos e económicos e que dará um contributo muito positivo à dinâmica local. Seremos visitados por milhares e milhares de pessoas”.

Ainda que se vista e apresente como um evento histórico, cultural e pedagógico, a Feira Afonsina é essencialmente um evento social que visa sobretudo ocupar a restauração e hotelaria vimaranense durante uns dias, como acontece com qualquer evento massificado com estas características, seja de cariz histórico, musical ou gastronómico. Para além disso, até consegue uma mediatização praticamente gratuita, com uma cobertura televisiva que ocupa a grelha durante uma tarde e mais uns directos nos horários dos noticiários. Com isso, e com a “solidariedade” de todos os vimaranenses (sobretudos os ligados ao comércio local), o evento mobiliza os locais e, sobretudo, os visitantes, que deambulam pelo país semana após semana em busca deste tipo de entretenimento, prometendo rivalizar, em termo de popularidade, com as próprias Festas Gualterianas.

Do ponto de vista político, não há mal nenhum em tentar instrumentalizar a história para promover o turismo – um turismo canibal e predador, diga-se –, mas não se deve é vender “gato” por “lebre”. Do ponto de vista cívico, não deveria ser esta a estratégia de valorização e consolidação de Guimarães como Património da Humanidade. Não me parece, muito honestamente, que seja com a Feira Afonsina que se esteja a valorizar “a identidade histórico-cultural impressa no código genético da cidade”, como li no apelo ao voluntariado para este edição. Com a Feira Afonsina está-se a promover precisamente o contrário, uma folclorização da memória e uma infantilização da história que não valoriza nada nem ninguém.

Não deixa também de ser irónico que a Feira Afonsina tenha sido criada em pleno 2012, ano em que Guimarães ostentou orgulhosamente o título de Capital Europeia da Cultura. Não me parece que tenha sido por eventos desse tipo que nos foi tenha sido confiada tarefa. Não deixa de ser decepcionante que, a par da Festa Branca, a Feira Afonsina seja hoje o maior “legado” imaterial que a Guimarães 2012 deixou aos vimaranenses. Mais decepcionante ainda porque, felizmente, temos na cidade exemplos de outros eventos massificados, e não me canso de citar o Guimarães Noc Noc, em que se consegue aliar uma vertente de entretenimento à cultural e didáctica sem apelar gratuitamente ao “nacionalismo de bairro” sempre tão ao jeito dos responsáveis políticos.