Ao fundo, contra as nuvens que pairam acima da chuvosa noite trepidante, ouve-se o bater constante e excitante de uma bateria. É o rugir de 74 em 2016!
Com precisão e energia, Buddy Rich atira o ritmo da sua bateria às paredes excessivamente grafitadas, coloridas, coladas, pastilhadas e sujas do Tattooed Mom. O bar, punk no estilo e diversificado na clientela, sempre assídua e pontual para uma cerveja, um jogo de bilhar ou lançar dardos, deixa-se inundar pela luz trémula, pelo fumo e pela cadência inebriantes da noite de sexta-feira. Nos cantos, nas pistas, nos balcões e nas escadas, os clientes entopem-se em lager, Guiness e no whiskey doce que precede a PBR do Citywide Special enquanto se atropelam contra os balcões, a jukebox, a mesa de bilhar ou uns contra os outros. Que multidão desvairada aqui vai! Uns falam, outros cantam. Todos riem. Há quem veja e há quem se deixe ver. Há quem dance e há quem se faça dançar. E há o flirts! Uns beijam, outros deixam-se beijar. Uns são de cá, outros vêm de fora. Há-os baixos, altos, magros, gordos, elegantes, bem proporcionados e outros sem medidas certas. E há-os de peles pintadas com tatuagens mais ou menos tribais, umas por acidente, outras por intenção. Os que têm tatuagens são tão amigáveis como todos os outros. Os que não as têm gostavam de as fazer, mas o ideal, para já, é pedir outra Guiness. E venha também o Citywide que a cerveja, aqui, não se bebe sozinha.
Buddy Rich sai de Nuttville e ataca Kilimanjaro. A música mantém o ritmo, mas mais interessante é quem o faz: aqueles além, que seguram os pesados copos de lager contra o canto escuro que grita em graffiti contorcidos, e falam sobre a importância de se estar vivo no século XXI, têm os cabelos em espigões coloridos e ameaçadores enquanto vestem um elegante terno com colete às riscas cinzentas e azuis e vermelhas e verdes e flores roxas. Aqueles outros, em alto contraste, vestem-se de coletes de cabedal por cima de t-shirts com caveiras brancas de onde rastejam serpentes verdes que são engolidas por corvos negros. Balançando-se em biqueiras de aço, conversam com os elegantes do Rittenhouse, que estão revestidos por sedas e linhos de cores e padrões nunca antes vistos e abrilhantados nas orelhas e no nariz por inúmeros e ofuscantes piercings prateados. De que falam? Não se percebe…
E venha mais uma Guiness! Citywide? Pois então, aqui e ali. Para o meu amigo também. Esta rodada pago eu, depois pagas tu, depois vemos quem paga a próxima. Já é quase meia-noite, já não chove lá fora, a energia não se esgota e isto ainda só começou.
Fala-se bem, beija-se mais, bebe-se melhor! É sexta-feira. Que importa o som oco do amanhã, os ecos de ontem ou os mistérios do futuro? Fiquemo-nos pela expectativa imediata de que esta será uma boa noite, única ou repetida.
Tudo segue a bom ritmo. O compasso é bom e não dá sinais de que vá abrandar. Escutam-se interessantes conversas, aqui e ali, entre um gole e o seguinte: POP, Phillies, Met, NYC, Burning Man, San Francisco e Chicago, depois do Mardi Gras em New Orleans. E nesta marcha nocturna, fresca, negra e com espuma no topo, conclui-se o seguinte: Tattooed não é o bar, mas sim os contrates berrantes, a desproporcionalidade, a leveza e a surpresa constante dos que lá vão, sempre vibrantes e a ressoar nas paredes cobertas de pesadas e espessas camadas de graffiti.
A meia-noite faz-se acontecer. É tempo de mudar. Vamos ao Bob’s!
A noite corre fresca e tranquila na South Street. Caminhando vagarosamente, respira-se com leveza e calma. Muitos dos que se apertavam em confusão no Tattooed movem-se languidamente para oeste, em direcção ao Bob & Barbara’s Lounge, um dos recursos dos notívagos e casa por excelência do bebop. Outrora uma das capitais americanas do jazz, berço de nomes como Dizzy Gillespie e John Coltrane, Filadélfia vive um tempo de crescimento e mudança, empurrado pelo sucesso económico da cidade. Contudo, apesar da transformação e da “lavagem de cara”, a Cidade do Amor Fraternal tenta não esquecer a cultura do jazz que a inspirou antes e durante o colapso industrial dos 80. Filadélfia renasce e reinventa-se… e ouve jazz.
Vamos andando, com calma e em amena conversa, de este a oeste, desde a 5th até à 15th Street.
Estendendo-se para noroeste, o céu salpicado de pequenas nuvens pinta-se de verde, roxo, vermelho e azul com as luzes plásticas dos arranha-céus do Financial District. A norte, pode ver-se a multidão alegre dos que se passeiam pela Walnut Street, em busca da próxima cerveja num club em University City, ou de mais um cocktail num dos espectáculos exóticos da 13th Street, ou de um namoro escondido nos bistros intimistas de Old City ou nos speakeasies secretivos de Chinatown.
Atravessamos agora a Broad Avenue. A City Hall está bonita, hoje. A noite vai calma… Que silêncio que faz cá fora…
Mas eis que chegamos ao Bob’s!
Passaporte. Sorriso impaciente do segurança. Acenos de cabeça. Abre-se a porta…
BOOM! Dentro do bar a bateria em êxtase de Wayne Morgan é batida em repetição trepidante à direita de George Perakis que, com perícia fulminante, dedilha o baixo à direita de Sonny Keaton, que martela com fúria contida as teclas do orgão Hammond. O ritmo quase alucinado do bebop é atirado com energia e destreza por cima das cabeças volteantes dos ouvintes e contra as cores quentes de néon verde, vermelho e azul. Todos se empurram e abraçam e dançam e bebem. Voltam os whiskeys e as cervejas e os cocktails. Já ninguém se preocupa com nada que não seja a maior diversão possível ao som eléctrico, desinibido e inebriante do orgão, do baixo e da bateria dos The Crowd Pleasers (Wayne, Sonny e George). É esta a banda sonora que acompanha as noites desta multidão em fúria: jazz! Batido, espremido, eléctrico, ritmado e com a mesma energia intoxicante e aditiva dos tempos de diversão louca do Harlem.
É preciso saber os passos? Nem sequer se pense nisso: basta deixar-se ir, que é a melhor forma de aqui estar. Alguém grita algo a outro alguém que tenta ouvir e beber, ao mesmo tempo que salta e bate os pés e agita os braços ao ritmo insano da música. As bebidas entornam-se, as gargantas molham-se e os pés e os ouvidos e o corpo todo já não conseguem estar senão em eterno movimento. E todos sorriem e riem e consolam-se. Viste o Wayne? Acabou de partir uma das baquetas contra os pratos da bateria. Não para! Já agarrou outra baqueta, enquanto que a que partiu vai aterrar no decote largo e pulsante de uma mulher que esbraceja ao som da música sem freio.
E mais ritmo, mais luzes, mais sons, mais risos, mais cores, mais bebidas, mais energia, mais música! Onde vai isto parar? Este sítio é uma locomotiva sem travões, que se lança a toda a velocidade no tempo ao saber que vive e pulsa e respira e tem música na fornalha. Sonny martela com mais fúria ainda as teclas do orgão, mas George não lhe fica atrás, contorcendo-se ao tentar arrancar os sons mais excessivamente incríveis do baixo. Serve-lhes de fundo a bateria de Wayne, em raiva desenfreada. Competem entre si e já não tocam pelos ensaios: hora de improvisar! Intensifica-se o barulho e as gargalhadas e os movimentos espasmódicos da dança tribal do bebop. A Anette junta-se agora tocando pandeireta, logo seguida por Johnny “Crazy Legs” Silverman, que também toca pandeireta. Nem um nem outro fazem parte da banda, mas fazem parte da música, tal como o Pete “Cranberry” Houlton, que contribui com o trompete.
Por fim, chegou Dizzy Gillespie, para quebrar todos os limites: o Bob’s torna-se num pequeno manicómio em que os pacientes se deixam enlouquecer momentaneamente, mergulhados nos gritos saudáveis e contagiantes da música. Tudo é levado ao excesso: mais dança, mais risos, mais espasmos, mais gritos. Mais uma bebida! Citywide! Eia eia eia! Bate os pés. Bate palmas. Salta. Voos e rodopios. Um beijo, dois beijos, três beijos. As verticais encurvam-se, o chão ondula, o tecto esvoaça. As luzes esfumam-se. Saltam os sapatos, projectam-se os botões, arrepiam-se os cabelos. Cai a sintaxe e a gramática. Bebop, be-bop, be bop.
Na pista e no bar dança-se e ri-se sem freio: música, luzes, risos, conversas, improviso e a surpresa constante de se viver nas ondas descontroladas de uma fúria assim. Lá fora a noite passa, etérea e cheia de música. Vês as luzes eléctricas da cidade? São o novo sol.
Como é que se pára esta locomotiva? Onde é que se esgota esta energia? Não será aqui, nem será hoje. Amanhã, então? Talvez, mas o amanhã será sempre depois.