Cidadania e Participação

A toda a hora e momento, poder opinar sobre qualquer coisa e fazer chegar essa ideia a qualquer canto do mundo, é uma ideia poderosa, mas também uma imagem um tanto perturbadora, se não, patética.

Convenhamos que ninguém tem sempre algo de pertinente a dizer, muito menos merecedor de ser partilhado com o mundo. Se escrevo estas palavras embebidas de uma certa ironia, é porque de facto o perigo do voto, desinformado e desinteressado, nos ameaça enquanto sociedade e é também e ainda uma ameaça real à construção de um futuro sustentável. Aliás, é o destilar de veneno e irracionalidade que frequentemente se manifesta em redes ditas sociais que o comprova. Mas é neste esparregado que nos encontramos na actualidade. Uma obsessão pela participação.

Quando entramos num museu, já não queremos apenas vislumbrar a obra, queremos também viver nela. E ler a notícia não nos basta, queremos investigar, experimentar os acontecimentos ou vestir a casaca de comentador da vida em blogs ou vlogs. O curioso é que nada disto é pretensão. Simplesmente fomos mimados pela era das novas tecnologias que colocaram o nosso ego no centro do mundo e contamos com respostas instantâneas porque vivemos online e num tempo que não se faz esperar.

Mas também é verdade que há toda uma nova dimensão de cidadania para aqueles que se emanciparam e criaram ou procuram novas possibilidades e espaços cívicos. Somos (ou pelo menos podemos ser) pessoas mais exigentes, capazes, atentas e críticas. E queremos fazer parte do mundo, e interagir com e nele, da forma mais autêntica e construtiva possível.

O que têm em comum Aristóteles, Dali e o orçamento participativo?

Para Aristóteles o estatuto de cidadão era reconhecido apenas àqueles que participavam nas decisões políticas da cidade, o que pressupunha um papel activo na governação, na legislação e até na justiça. A sua concepção excluía, por preconceito, de género ou etnicidade, as mulheres, os escravos, os menores e os estrangeiros. À actualidade, apenas as mulheres conquistaram já esse direito-dever, e a escravidão foi oficialmente abolida, embora perdure sob outras formas. Outro, Platão, via o cidadão pelo prisma e preconceito de superioridade intelectual dos reis filósofos, aqueles únicos cidadãos capazes e competentes para decidir sobre a organização da sociedade. Ele via o perigo de deixar à vontade e razão de qualquer um a responsabilidade de decidir sobre a vida de todos.

Qualquer um, conhecedor ou não do sistema e dos desafios a resolver; qualquer um, interessado e engajado com as causas do colectivo ou só das suas, pessoais; qualquer um, capaz e competente ou não para saber agir em conformidade, passar à acção. Esta ideia pode ser hoje contestável pela universalidade dos Direitos Humanos, mas permanece legítima a luz que emana sobre a tremenda responsabilidade do ser cidadão, que não se pode nunca esgotar na escolha de um representante, mesmo que essa seja uma escolha informada. Aliás, voltando a Aristóteles, ele reconhecia no sorteio aleatório um maior valor democrático do que ao voto eleitoral. Os órgãos administrativos da (sua concepção de) cidade eram por isso preenchidos por sorteio, o que beneficiaria a participação de todos no governo, atenuando e neutralizando a oligarquia e os poderes das elites, e, contrariando a corrupção. Para ele a verdadeira liberdade só poderia existir no mandar e ser mandado.

O sistema judicial nos Estados Unidos da América, que coloca o cidadão no papel de juiz, parece inspirado nesta visão do cidadão activo. E há experiências de gestão urbana que se inspiraram nesta democracia representativa aleatória. Mas é outro o contexto de participação cívica que se pretende destacar aqui e agora — o orçamento participativo. Trata-se de um modelo que chama à responsabilidade os cidadãos na gestão do orçamento público, ao incumbi-los de decidir sobre como gastar (uma parte) esses fundos. O sistema surgiu em Porto Alegre, no Brasil, nos anos 80. Reconhecido pela ONU como uma das 40 melhoras boas-práticas de gestão urbana, tem vindo a ser replicada por todo o mundo. Não sendo linear a sua complexidade e fragilidades, e podendo assumir um carácter consultivo ou deliberativo, o seu sucesso parece estar proporcionalmente relacionado com os níveis de capital social e, basicamente, se as pessoas querem e sabem como participar.

Em Portugal, chegou primeiro a Palmela (2003) para depressa se replicar por outras regiões do país, incluindo Guimarães (2013) (fonte). Foi António Costa que introduziu o modelo em Lisboa (2008), estratégia que agora se replicará a nível nacional, dando um novo passo ao nível da inovação democrática, ao afectar parte do Orçamento de Estado para 2017 à realização de propostas cidadãs de projectos nas áreas da agricultura, ciência, formação de adultos, cultura e educação.

Com tudo o que há a louvar num modelo que, necessariamente, se deverá fazer acompanhar pela emancipação do cidadão, o que implica um investimento abrangente na sensibilização e ampla formação cívica — porque sem um número representativo de cidadãos envolvidos na apresentação de propostas e na sua votação, o modelo não faz sentido —, a maior expectativa está em observar de que forma se porá em prática a nova directiva que quer envolver os alunos (do 3º ciclo) na gestão escolar, já a partir do próximo ano lectivo. Que actividades se devem implementar, que equipamentos ou melhorias merece o recreio? Que serviços e conteúdos podem valorizar as metodologia de ensino-aprendizagem? Mas também, como se processam decisões na escola e qual o papel do aluno no seu funcionamento? Assim se espera que o orçamento participativo contribua para a democratização das escolas e potencie o papel cívico que os jovens poderão vir a desempenhar na sociedade. Se bem que várias são já as escolas que adoptaram esta estratégia (as assembleias da Escola da Ponte é um bom exemplo), só adiante poderemos avaliar em escala o seu impacto ao nível da mobilização cívica e reflectir sobre a abordagem (ou abordagens) que melhor resultam enquanto estratégias de formação cívica. Para isso, precisaremos de alguns anos até que a nova geração de cidadãos se revele. Cá vos esperamos!