Cidadania e Motivação

O balanço do ano pode ser feito de muitas formas, na esfera pessoal ou colectiva, privada ou pública, com listas dos fracassos que queremos reverter, das coisas das quais nos queremos distanciar, com os acontecimentos que queremos valorizar, e com as ações e planos com que nos queremos comprometer num novo ciclo.

Ao invés de listar o óbvio, deixo aqui uma ideia (leia-se, trata-se de um cruzamento de várias ideias e leituras cruzadas) que me provocou recentemente um efeito overview, no sentido em que oferece uma leitura possível do paradigma civilizacional em que vivemos, baseada numa visão egocêntrica do homem, dando-nos pistas sobre qual a contra abordagem possível.

E se o nosso conceito da espécie humana fosse positivo?

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No séc XIX, John Stewart Mills apresenta o conceito da natureza humana enquanto homo economicus, vendo em cada indivíduo alguém que age racionalmente em busca do benefício pessoal e da obtenção de bens materiais, com o menor esforço e trabalho possível. Foi esse pensamento que inspirou também as grandes teorias económicas do séc XX, onde, quer no modelo capitalista, quer no comunista, o homem é movido por estímulos exteriores a si mesmo, sejam esses o dinheiro ou a força. E vejamos que, nas democracias cada vez mais reféns dos mercados, o individuo é simultaneamente independente e fraco, subjugado a regras e hierarquias das quais, enquanto cidadão, se deve emancipar pela legitimidade que só o mérito lhe concede, sem lugar para critérios artificiais de poder – poderá a anarquia ser mais democrática do que a democracia? Divagações para outra crónica.

Como contraponto da visão homo economicus, temos a teoria do homo reciprocans, que concebe o homem como ser nato motivado para cooperar em prol do bem comum e desenvolvimento positivo do seu meio envolvente. E eis que, no final dos anos 60, os estudos de Edward Derci evidenciam uma outra natureza humana: a motivação intrínseca que nos leva a fazer coisas difíceis e altruístas – como escalar montanhas ou ter filhos -, e que resulta dos nossos interesses, valores, curiosidade, sentido de realização, sentido de urgência e entusiasmo. Derci descobre também que essa motivação intrínseca pode ser oprimida por estímulos externos e, com isso, (co-) define a teoria auto determinação. Estudos posteriores, especificamente ao efeito dos estímulos financeiros, demonstram invariavelmente que a compensação material, inativa o compasso moral do indivíduo, diminui o seu grau de altruísmo, capacidade criativa e iniciativa própria. Caso para, em pleno séc. XXI, questionar qual o modelo e pensamento económico difundido nas escolas: um, focado no desenvolvimento de lucros financeiros, ainda que pressionando e explorando recursos, ou um outro, que incentiva o desenvolvimento do capital social e humano em prol da sustentabilidade da vida e do planeta?

Poderemos partir do princípio de que a natureza humana é complexa e encerra em si um pouco de economicus e um pouco de reciprocus, e que, numa análise quási mindfulness, revelar-se-á aquela que promovemos e alimentamos.

Quando não só os recursos naturais e a biodiversidade estão sob ameaça, mas também o trabalho, teremos que repensar o mecanismo da era industrial que ainda nos educa, nos organiza e comunica connosco, enquanto proletariado, e passar de uma visão economicista para outra centrada na motivação intrínseca e no desenvolvimento civilizacional. De repente, em vez do pretendido lucro, poderíamos erradicar as guerras movidas pela industria bélica, desenvolver sistemas energéticos totalmente sustentáveis e respeitar outras metas ambientais, renunciando ao lóbi automóvel, erradicar doenças com a curiosidade académica e científica, renunciando ao oportunismo farmacêutico, e erradicar a pobreza, distribuindo riqueza em prol de sociedades igualitárias e dignificantes. E na escola, em vez de disciplinas, teríamos grupos de trabalho multidisciplinares debruçados sobre como formular e responder a grandes questões da existência humana e planetária. A motivação seria a realização de contribuir para um mundo melhor e a compreensão (e construção da nossa relação com) do universo.