Há uma promessa de futuro que se vislumbra inteligente: a cidade inteligente. Mas qual o pensamento que a comanda?
Na cidade inteligente tudo está interligado e comunica entre si através da trama da internet of things, ou como também já se designa, a internet of everything. Do hospital que monitoriza remotamente os bypass dos seus pacientes cardíacos e todos os portadores de um iwatch, o “ponto que se pica” no trabalho, o fluxo de energia que se autogere, as câmaras de vigilância no bairro, SCUTS que monitorizam veículos e sistemas urbanos que guiam o condutor até ao lugar de estacionamento mais próximo, enquanto a polícia ou os serviços secretos interceptam comunicações visando guardar a ordem pública e perfilar potenciais ameaças terroristas. Lá, toda a acção humana (e seus utensílios) é registada, analisada, cruzada, sob a promessa de eficiência — de serviços, de comércio, de tráfego, de fluxos de trabalho, de monitorização económica, de comunicações, de segurança, entre outras conveniências. Uma utopia para o consumidor e o seu ego! Mas com que consequências para o indivíduo, o cidadão e o seu livre exercício da cidadania?
Se esta descrição soa algo futurista, é engano — o futuro já chegou e todas estas manifestações começam a penetrar o quotidiano de muitas sociedades do globo, como a nossa. Da mesma forma que já é incontestável que a internet comporta uma dimensão da nossa existência e da nossa identidade. O que fazemos online ou com ferramentas tecnológicas, é uma extensão do nosso pensamento, logo, parte da nossa individualidade e compõe/constitui uma identidade digital, e, o seu ambiente, um território da nossa cidadania. Essas acções são susceptíveis de serem registadas num dado sistema, sob uma determinada lógica, traduzindo-se em informação — dados —, que por sua vez é passível de ser organizada e interpretada sob múltiplas narrativas.
Um lugar onde toda a acção humana é monitorizada, é um lugar que não apenas observa, mas também condiciona a experiência do indivíduo com o mundo, a sua interacção, percepção e capacidade de nele intervir, para lá do desenho inteligente (de uma dado sistema ou cidade de sistemas). Porque quem detém as infraestruturas da internet são governos e empresas, tal facto determina que, de um espaço de liberdade, a internet seja hoje, também e cada vez mais, um espaço institucionalizado e corporativo, que se alimenta das múltiplas identidades digitais, que controla. Controle esse, cedido de forma voluntária, ainda que muitas vezes iletrada, concedendo, por exemplo, a grandes empresas, o poder de definir os termos e condições da cidadania digital. Exemplo disso foi a experiência conduzida pelo Facebook, evidenciando o potencial de contágio emocional em massa, através das redes sociais. Mas também ao nível dos media — vigilantes da democracia — se experimentou com a atribuição de títulos mais ou menos sensacionalistas, consoante o perfil dos leitores. Se por um lado o conhecimento decorrente destas experiências seja valioso, a falta de ética no seu processo demonstra a ameaça imperceptível da vigilância sobre o cidadão.
Isto acontece, em parte, quando se verifica o controlo tecnológico por um grupo dominante (uma visão marxista), mas também porque os avanços tecnológicos nem sempre (ou raramente) são equiparados temporalmente ao nível social (na apropriação ou adopção tecnológica, na compreensão do seu funcionamento e suas aplicações ao serviço da sociedade) ou legal (com leis e normativas, sempre que isso se justifique). A internet e o papel das redes sociais são espaços considerados importantes para a emancipação do cidadão no acesso à informação e à conectividade que nos permitem. Mas quais são os direitos de que gozamos online senão apenas aqueles que nos são concedidos e dados a conhecer por essas corporações? Esta questão conduz-nos ao carácter de cidadania e ao que intrinsecamente a ela deveria estar ligado.
Cidadania é o direito a ter direitos, ou assim o disse Hannah Arendt. O que está directamente relacionado com a nossa pertença a um Estado obrigado a zelar por eles, sejam eles a nossa privacidade, liberdade, segurança, educação, entre outras possíveis dimensões consagradas constitucionalmente por um dado Estado. Essa condição de sermos cidadãos de um país é atribuída à nascença, ora com base no lugar onde se nasce — jus soli —, ora com base na cidadania dos pais — jus sanguinis. Há ainda contextos em que se muda de cidadania. Voluntariamente, por exemplo numa situação de migração prolongada ou matrimónio intercultural, ou, involuntariamente, no caso de refugiados de guerra ou outros, que se vêm obrigados a pedir asilo internacional. Hoje, pode ser também um algoritmo a ditar a nossa pertença a um lugar, ou a vários, com os inerentes direitos e obrigações. Assim o demonstra a prática pela NSA (Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos da América), ao interceptar as comunicações de todos aqueles cujo padrão de navegação na internet os define como estrangeiros (menos de 50% das páginas visitadas serem nacionais).
O poder de controlo dos algoritmos (fórmulas de cálculo para processamento de informação) é determinante na concepção do perfil dos utilizadores online, e, eventualmente, da sua cidadania e seu exercício, condicionando os resultados de buscas, o tipo de publicidade a que nos expõe e concedendo ou restringindo o acesso a conteúdos ou serviços em função das páginas que visitámos anteriormente, das palavras que utilizamos na troca de emails e da localização do nosso IP (morada da localização física do computador, mas cuja informação é possível de mascarar através de uma VPN, virtual private network). Estes são exemplos de como vamos sendo permanentemente monitorizados. É certo que se entrarmos por campos filosóficos, facilmente questionaremos a existência de uma verdadeira liberdade de escolha, expressão e capacidade de decisão no mundo contemporâneo, algo tão intrinsecamente ligado ao nosso contexto cultural, social e temporal. Mas esta nova realidade coloca-nos perante uma ameaça maior a um direito que está na base da liberdade e do conceito democrático: a nossa privacidade.
Como conceber individualidade sem privacidade? Como conceber liberdade sem privacidade? Como conceber liberdade de expressão sem individualidade e liberdade? Como conceber democracia sem nenhum destes valores?
Este não pretende ser um argumento contra a tecnologia, a qual potencia uma inteligência colectiva assente no open source, que pode e deve estar ao serviço do eficiente funcionamento da sociedade e beneficiar a qualidade de vida dos seus cidadãos, de cujas vidas faz parte. Mas há uma ideia que se deve contestar: a de que tudo é racionalizável em dados e medições, ou que isso seja desejável. E uma ideia que nos deve inquietar: o impacto de que os sistemas e a tecnologia têm nas nossas vidas será sempre proporcional e relativo às motivações, características e limitações de quem os pensou. Governos e corporações, não são necessariamente os culpados, mas são os suspeitos do costume. No entanto, vale a pena conhecer iniciativas (civis), que instrumentalizam a tecnologia e recolha de dados (essencialmente públicos) de forma inspiradora, aberta, visando democratizar e tornar mais transparente a cidade inteligente, ou simplesmente, informar e desafiar o cidadão atento a participar na sua polis.
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