A Fuga e a Ausência

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Parte I

Adelaide não vai comprar as ostras se não tiver a certeza de que são frescas, apanhadas ontem numa qualquer praia da Bretagne. A madame, com os braços possessivos estendidos por cima da banca do marisco, apercebe-se da desconfiança. As ostras são caras, mesmo a preço de fornecedor, pelo que não quer desperdiçar a oportunidade de vender algumas. Apanhando Adeleida distraída a olhar para os lagostins, resgata uma concha pesada e rugosa da cama de gelo e, com uma pequena faca dotada de grande precisão cirúrgica, expõe o corpo gelatinoso e delicado que dorme no seu interior.
Adelaide é apanhada de surpresa mas decide dar uma oportunidade à vendedora. A pobre ostra, assim exposta aos ares estranhos do marché, tenta aconchegar-se na concha, contorcendo-se. Cheira a sal e zinco, o cheiro do mar. Adelaide parece ficar contente com o ligeiro desconforto da ostra. Decide levar uma dúzia, depois da madame lhe ter oferecido a ostra já aberta.
As seis ostras, protegidas pelas pesadas conchas, pesam-lhe no saco, juntamente com os limões, a farinha, os ovos, a manteiga e os figos maduros. Hoje tem o filho mais velho e a nora para o almoço. Os netos foram passar a sexta e o fim-de-semana a Rouen, na Normandie, a casa dos avós maternos; e o filho mais novo foi de férias para a Córsega. Vai ser um almoço sossegado…
Depois – não se pode esquecer! – tem de telefonar para Portugal, para a mãe. Mas se quer preparar o almoço a tempo é melhor apressar-se em direção a casa. Ainda é cedo e não há muitos turistas na rua, mas Paris é sempre lenta aos domingos…

Na estação de metro da Boulevard Diderot apercebe-se de que o próximo comboio só chegará dentro de dez minutos. Sentindo o peso das compras, decide sentar-se num dos bancos metálicos aparafusados à parede.
Tirando um casal que espera na plataforma oposta, a estação está vazia. Os carris do metro, de um negro metálico e pontilhados de lixo, esticam-se, perfeitamente paralelos, entre as duas bocas negras da estação. Distraída pela falta de movimento ou barulho, Adelaide acaba por fixar a sua atenção no casal.
São os dois novos e magros e, pelos gestos, parecem discutir. É uma discussão a morno. Embora se esforce para os ouvir – sem dar demasiado nas vistas – não consegue perceber o que dizem. As palavras chegam-lhe em ondas roufenhas e arranhadas pela corrente de ar bafiento que corre entre os dois lados da estação. Estranhamente, as palavras distorcidas e a idade do casal lembram-lhe de quando tinha a idade deles e chegou pela primeira vez, e para sempre, a Paris.

Era muito nova quando decidiu que vinha com o homem tentar a sua sorte na França. Foi um tempo difícil. Na altura não sabia falar uma palavra de francês e sabia ainda menos sobre os franceses. A única certeza que tinha era de que na França havia trabalho e dinheiro, e em Portugal não. Sair de casa tinha custado – só ela, o homem e Deus sabem quanto! – mas a luta estava ali, em Paris. O Manuel, um primo da parte do pai que tinha “saltado” a fronteira, e o marido foram quem a convenceu de que, para ter uma vida melhor, tinha sair de Portugal e tentar a França.
Olha que vai ser difícil. Espero que consigas, mas não sei…, foi o que ouviu uma e outra vez. E estavam certos. Foi difícil.
Lembra-se de que apanhar o jeito ao francês foi das maiores dificuldades que encontrou. Uma pessoa apanhar-se assim sem entender o que lhe dizem, por muita boa vontade da parte de quem ouve e por esforço maior de quem fale… Tantos erres e bouffes e aquela maneira estranha que os parisienses têm de pôr os lábios, como se estivessem a beijar as palavras. A princípio as palavras chegavam-lhe num zumbido e não conseguia perceber nada. Não percebia os franceses e a sua língua arranhada, não percebia porque tinha saído de Portugal, não percebia o que tinha levado outros portugueses a Paris, não percebia o marido, ora a discutir, ora em silêncios infinitos. Em certas alturas pensou que nem a si mesma se percebia.
Nos primeiros meses que passou em França, a dormir no sofá-cama do apartamento do Manuel e da mulher Júlia, e a limpar as casas de janelas altas e paredes floridas das madames de Montparnasse, Adelaide pensou muitas vezes que ser emigrante, afinal, não era apenas ter uma vida dura longe de Portugal. Era, antes, ser sozinha num país onde se falava por zumbidos e onde os factos diários se resumiam a levantar, trabalhar, deitar, repetir. O alheamento foi tanto maior quando foi de férias a Portugal dois anos mais tarde e se sentiu estrangeira na sua terra natal. Alheia a si e aos outros, ser emigrante tinha, durante muito tempo, significado sentir uma enorme ausência.
Mas tinha vindo para Paris para lutar e, não fosse ela dona de si mesma, haveria de ganhar a luta. Claro, era Paris ou voltar para trás. Decidiu ficar e escolher a vida difícil. Uma vida dura, é certo. Mas, depois, quem iria viver por ela?
Os anos passaram. O trabalho árduo foi muito e sem pausas, tirando o Natal e as férias de Agosto em Portugal. Aos primeiros anos, aborrecidos num ritual diário e desesperante entre casa e o trabalho e em que o mote era “Vida Ingrata”, sucederam-se anos de crescimento familiar, melhor casa e melhores trabalhos, novas preocupações com o nascimento dos filhos. Depois pôde ver os filhos crescer, estudar e subirem mais na vida do que ela e o homem tinham subido durante todos os seus anos na França. Tinha sido difícil mas tinha valido a pena.
Olhando para trás, Adelaide dá agora um significado diferente ao que é ser um emigrante português em França. Ela sabe que as gerações mais novas não percebem aquilo por que passou para chegar onde está hoje. Sabe também que, em Portugal, é incluída numa categoria especial de portugueses: os emigrantes. E sabe também que os que ficaram por lá não vêm os portugueses emigrantes da mesma forma que os emigrantes vêm todos os portugueses. Sabe-se portuguesa, claro, e voltar à terra-natal sempre esteve nos seus planos. Mas também sabe que o orgulho dos portugueses nos seus emigrantes é, em parte, como um remédio ou uma mezinha que ajuda a esquecer de que só há emigrantes porque Portugal não soube tratar dos portugueses. Se Adelaide tivesse insistido nisto tinha resumido o seu raciocínio dizendo que, em Portugal, alguns olham os emigrantes com uma admiração ressentida. Para ela, dizer-se que os emigrantes em França são apenas portugueses que resolveram ir trabalhar para o estrangeiro é quase tão pouco como dizer que ser-se emigrante é ser-se português fora de casa. Da forma como vê as coisas, e por tudo o que passou, Adelaide vê-se primeiro como mulher, mãe e trabalhadora e só depois como portuguesa. Pode não agradar a todos mas, no caso dela, isto era a verdade.

Apesar de tudo, depois de tantos anos de trabalho árduo a fazer a sua vida na França, já não se sente alheia em Paris nem estrangeira em Braga, e a ausência que sentia deixou-a em Portugal.

Um grito de faíscas metálica sobressalta Adelaide. Levanta a cabeça e, focando os olhos no túnel que se abre à sua esquerda, vê a luz intrépida do metro a aproximar-se da estação. O casal da outra plataforma já não discute e dá as mãos, esperando pelo metro. Altura de ir para casa. A família conta com ela para preparar o almoço de domingo, e a mãe, pacientemente sentada junto ao telefone, espera em Portugal por uma chamada sua.