A Fuga e a Ausência

op-10

Parte II

Uma silhueta contra o azul da janela, D. Palmira aguarda pacientemente pelo telefonema da filha. O tempo corre lento no minúsculo relógio de pulso e o telefone parece esperar um sinal.

Adelaide deve ligar dentro de momentos. Esperar por um telefonema da França é um ritual que se repete todos os domingos – tire-se o Natal e Agosto – desde que Adelaide fugiu para a França há, fazem agora, 25 anos. Uma espera certa como a missa: entre este telefonema e comungar não há grande diferença.

O dedo grande do relógio já andou uns quantos minutos desde a hora combinada. Será que hoje a chamada não vem? Há-de vir. Intromete-se um pensamento que não é estranho: como é que o telefone traz a voz de quem liga? E como é que leva a de quem fala? E de tão longe, desde lá da França até Portugal…

Palmira chegou a ir com o marido, João, a Paris, visitar a filha e o genro. Ainda se lembra o que lhe custou a viagem: os comboios, por muito fumo que deitassem, eram sempre lentos, e as distâncias eram difíceis de encurtar. Quase dois dias, em bancos duros de madeira, sem espaço para deitar, distraída apenas por uma ou outra  fala com o homem e sem nada para ver para além da paisagem alourada do Verão a escorrer lá fora. Acima da cabeça, uma mala apenas. E ainda se lembra do que pensou ao passar os Pirenéus: ia por onde tinham ido a filha e o genro, de uma vez e para sempre, uns anos antes. Foi a atravessar aquelas montanhas tortas e a pique que se apercebeu da verdadeira diferença entre os bilhetes de ida e os de ida-e-volta. E era uma ideia tão simples, apegada a outra que teve quando subiu para o comboio…

Mas passaram muitos anos desde então e Palmira evita ver a viagem com muita paixão. Lembra-se de tentar fazer o mesmo quando ia no comboio: a filha, com aquele feitio difícil, decidiu que tinha de ir viver para fora, e era isso. A partida foi uma notificação, não uma consulta: a filha já tinha decido que ia fugir para a França: o trabalho era melhor lá, dizia-se. Ou, pelo menos, a vida não era tão difícil. Em Portugal a vida era madrasta…

Mesmo assim, ainda hoje estava convencida de que a culpa da fuga da filha era do genro e dos sobrinhos: já tinham dado o salto uns anos antes e foram eles quem pôs na cabeça da Adelaide de que em Paris é que se trabalhava a sério e por bom dinheiro. Palmira não achou bem: havia bons trabalhos para as mulheres nas fábricas de tecidos – trabalho até à reforma! – e o lugar de uma filha era com os pais e a família mais chegada. Mas a fuga impôs-se e, com malas grandes de cartão, era vê-los partir: os de lá a chamarem os daqui, uns pelas mãos dos outros, a salto ou pelo posto de fronteira. E nós a ficarmos em casa, à espera do postal, da carta, da chamada da companhia, do telefonema, os nossos dias as contas de um rosário que nos adormece numa lenta solidão. E bem sabemos que o regresso não é para já, mas continuamos à espera…

O telefonema tarda em chegar. Será que a filha está doente? Não. Atrasou-se no trânsito, se foi visitar o filho. Às tantas devia ligar ela para a França… A Adelaide disse-lhe para fazer isso só numa aflição. Não, é melhor esperar.

Enquanto espera, D. Palmira olha pela janela. O céu está muito limpo hoje. O Sol dá à Terra as três da tarde. Está calor. Deve ser por isso que não se ouvem os pássaros. O homem está na cama, ou no quintal. Seja num sítio ou no outro, deve estar a dormir.

Para passar o tempo tenta rezar um Pai Nosso, mas a oração não lhe sai com convicção. Rezar assim, sem acreditar, não tem valor. De repente, impacienta-se com a espera. Num suspiro sacudido arranja uma trança do cabelo, estica o fio de ouro à volta do pescoço, estica a saia, respira fundo. O telefone, com um olho feito de números, olha-a com indiferença. Nada. Silêncio. O que anda a filha a fazer? Já passaram quinze minutos da hora e nada. O silêncio do céu e a calmaria da casa não ajudam. Tudo tão parado…

Acalmando-se por fim, Palmira volta a pensar na viagem à França. Ainda hoje tem bem viva a memória do que sentiu ao subir para aquele comboio: mais do que a imagem da filha à espera na gare de Paris, mais do que a cara contida do homem quando abraçou a filha, mais do que os prédios enormes e a confusão da cidade, mais do que o cansaço dorido da viagem, mais do que a melancolia dos Pirenéus, ficou-lhe gravada na memória a descoberta de que, pela primeira vez, se apercebia por completo que a filha tinha partido. Partido para um país diferente, com gente que ela mal conhecia, para trabalhar sabe Deus em quê. E é essa ausência, esse vazio insaciável que Palmira ainda hoje sente, quando pensa na filha. Porque tinha ela de fugir?…

Palmira sabe que a filha não gosta que se diga que ela “fugiu” mas ainda é difícil perceber como é que a filha não fugiu do país. Sim, os papéis estavam em ordem e a Adelaide passou a fronteira  sem entraves da guarda, mas, para a mãe, isso foi fugir, mesmo que tivessem passado os cem anos que parecem estes vinte e cinco. E viver em Paris, assim tão longe da família… Se D. Palmira não tivesse o coração habituado a uma espera tão grande e a uma solidão maior, e se não tivesse tido a vida dura que teve, poderia tomar o risco de pensar que a ausência da filha e tantos outros como ela, tornados emigrantes, tinha deixado a sua geração numa sala de espera, numa velhice independente e sozinha. A luta da filha tornou-se o vazio da mãe. E sabe Deus que o silêncio se torna maior e aperta mais… Mas a vida é mesmo assim, é raro que seja como a gente a quer, e o melhor é andar para a frente.

A casa e o céu continuam em silêncio. Brincando com o fio de ouro, Palmira olha o céu quente do Verão e vê apenas um azul sem fim: um céu sempre igual com um sol eterno, sem nada de novo debaixo, como aprendeu na missa. Não se vê nem uma nuvem… Nem vento que, não se vendo, percebe-se no ar. A calmaria que vai neste mundo…

Mas, então, das sombras, aparece uma andorinha a dançar por entre o chilrear colorido dos pássaros. D. Palmira alegra-se. O telefonema há-de vir.