Começo a escrever e “ (…) As sete mulheres do Minho (…) ” a cantarolar – e ora como o luto se põe a funcionar: tudo à nossa volta nos faz lembrar. Saudade saudade, ela também a apertar.
Recordou-se há pouco um vídeo, era eu pequeno num natal de família, havia comida, vinho, netos e cantigas, e no fim, um chá quente de Tília.
No vídeo canta-se “ (…) Essa mulher lá do Minho (…) ”. E cantar cantava ele que não o deixava sozinho. Cantar fazia-o mais sentir, chorar e mais por rir.
A morte sempre me fascinou.
Por ser tão misteriosa, lá no seu canto, sem falar com ninguém.
Parece que sabemos de tudo, menos da morte.
Este texto apresenta-se como interrogações que fazem da morte esse mistério sensual.
Vivi já algumas mortes, não as minhas, outras, mas a última será sempre a mais recente, e esta a que me faz pensar mais, talvez pela possibilidade de me faltarem sensivelmente 2/3 da vida para viver, se tudo correr conforme a dita normalidade, ou então por já ter vivido 1/3 dela.
É estranha a morte e inexplicável também. Não questiono tanto o envelhecimento. Que apesar de esquisito ainda se consegue discernir, de uma forma genérica, pela ciência e pela lógica.
Questiono a extinção, a separação de alguém do seu próprio corpo que lhe dava forma, e do nascimento, do acto de aparecer espontaneamente e desaparecer igualmente, no final.
É assustador ver um corpo que costumava ser uma parte tão importante de uma personalidade, deixar de o ser, gradualmente, desligando-se, pouco a pouco, até a deixar por completo.
É separado o corpo do ser – mas sem corpo não há viver.
É logo imprescindível a sua formalização. É o corpo, em matéria, composto por órgãos e células que nos faz ser, e fá-lo sem estar ligado à ficha… não é fascinante? Fá-lo sozinho, é um mecanismo independente que brota do nada, dura um período, apodrece e pára, para sempre. É ele que nos mata esse cabrão magnífico.
Mas é assim tão importante que não conseguimos viver sem ele? Há uns que vivem só com metade dele, ou mesmo quase nada. Acho que nesses casos já são de facto maiores que ele – mas que adianta? Estão bloqueados.
Pergunto-me o que realmente acontece à pessoa quando solta o corpo.
É difícil de imaginar que um dia não vou pensar mais. Que vou deixar de ser. Que o meu próprio acto de pensar e escrever vai desaparecer como uma gotícula que evapora e deixamos de ver. Mas aí nada se perde ou se cria, tudo se transforma. E nós? Também nos transformamos?
No nosso caso, a molécula vai mas a gotícula fica. Enterrámo-la ou queimámo-la – Porra, que retrógrada! Que macabro!
O acto fúnebre é algo igualmente estranho. Talvez só o seja por não estar habituado, não sei. Talvez se vulgarize e se torne algo até divertido, vamos ver…
Na verdade, este existe com um sentido, teoricamente, para pararmos e pensarmos na pessoa que não vamos voltar a ver ou a sentir perto de nós e consciencializar-nos disso. Fazer luto*
A estranheza de um funeral numa lista de 31 gramas:
(um próximo artigo falará sobre listas e a organização através delas)
1º – Ver aquela pessoa, ou o corpo dela dentro de uma caixa normalmente associada à tristeza e ela não estar lá e não saber para onde foi;
2º – Ver pessoas que já não via desde o último caixão aberto;
3º – Rir;
4º – Chorar;
5º – Ver pessoas que não imaginava a rir;
6º – Ver pessoas que não imaginava a chorar;
7º – Ver o primo da tia da sobrinha que tem o braço apoiado ao caixão, sem se aperceber, e ouvi-lo a falar sobre camelos que tropeçam em gomas coloridas;
8º – Reparar nos caixilhos, nas luminárias e nas ferragens da porta de correr;
9º – Querer chorar e ter vergonha;
10º – Querer chorar e não saber ao certo porquê;
11º – Querer chorar e saber porquê;
12º – Insultar mentalmente o Padre e a Igreja pela merda que são;
13º – Querer largar uma risada de bochechas e cuspe ao ouvir o acólito a desafinar mas ter meia igreja a chorar;
14º – Pensar em coelhinhos fofinhos mortos para chorar também;
15º – Não resultando, lembrar-me da verdadeira razão de estar ali e parar;
16º – Querer chorar e não poder;
17º – Pensar na minha morte;
18º – Ter curiosidade de como seria o meu funeral – quem estaria presente? Que diriam? Serei eu egocêntrico por pensar nisso?;
19º – Suplicar por não fazerem o meu funeral numa igreja porque poderia perfeitamente morrer de tédio;
20º – Imaginar-me a fazer a coisa mais estranha possível no momento menos apropriado possível;
21º – Sentir um conforto gigante num abraço sentido;
22º – Empatia;
23º – Sentir pura felicidade e aconchego na família unida, nuns para os outros, fortalecendo os laços;
24º – Tristeza pela tristeza dos outros;
25º – Chorar pelo choro dos outros;
26º – Chorar porque não o vou voltar ver;
27º – Perceber que não o volto a levar a casa de carro;
28º – Tristeza por ter vendido o carro que me ofereceu;
29º – Lembrar tantos bonitos pormenores, desde o chamamento “ÔôÔô”, ou ou “morde, morde”, até ao amarelado sorriso carinhoso;
30º – Arrependimento de coisas que fiz ou que não fiz;
31º – Chorar porque o meu avô morreu.
Esta é a minha experiência.
*Pensei no outro dia no luto como um outro tipo de separação (mas separação apenas, cada um contínua o seu percurso), como o divórcio ou o término de um namoro mais sério. Daqueles que nunca mais nos voltamos a ver ou a falar e nem sei se está viva ou se está morta…pois, é isso mesmo.