Num país onde ainda queima falar de violência de género, a decisão de levar o assunto ao teatro seria, só por isso, digna de nota. “Onde o frio se demora”, de Ana Cristina Pereira, é, porém, uma criação valiosa por algo mais do que apenas o seu tema. Este é um espetáculo preciso, exigente – para o espectador e para a sua única intérprete – e que consegue um equilíbrio raro entre a emoção e a capacidade de estimular o pensamento crítico sobre aquilo que vemos no palco.
O principal triunfo deste espectáculo está na permanente tensão entre uma manifesta invasão do espaço privado em que sentimos estar a incorrer enquanto espectadores, e um monólogo (na realidade são três, apresentados de forma consecutiva), que é construído como um diálogo a que só faltam as réplicas. As personagens estão a desvendar-nos o seu mundo e isso tende a deixar o público desconfortável, ao sentir que a história não lhe pertence.
A encenação de Luísa Pinto – num trabalho de teatro-documental, com evidentes preocupações políticas, que tem sido um caminho pouco percorrido pela criação contemporânea portuguesa – acentua esse paradoxo. Em cena, mantêm-se constantemente visíveis os objectos que remetem para o espaço doméstico (a roupa a ser passada a ferro, a banana que devia ser um lanche, a nota que teima em ser esquecida), mas o espetáculo nunca deixa de assumir a interpelação directa ao espectador, como se o convidasse a subir ao palco para formar parte daquela(s) casa(s).
Essa é também a contradição de que falamos quando o assunto é violência de género. O tema que é, aparentemente, uma coisa da intimidade, é, desde 2000, um crime público. E é um assunto que nos interpela a todos, porque em cada caso de violência sobre mulheres – como estes aqui se retratam – não é só aquela a vítima, é toda a sociedade, espremida sobre uma lógica, que perpetua formas de violência e dominação. “Onde o frio se demora” é certeiro na forma como vira o tabuleiro do jogo. Pondo no palco – afinal, o teatro é o espaço público por excelência – aquilo que nos dizem ser doméstico. Fazendo da violência doméstica uma violência pública.
O espetáculo, estreado em Março, na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, ainda continua em circulação pelo país. Este é o primeiro texto dramático de Ana Cristina Pereira, repórter do jornal Público, com um percurso marcado pela sensibilidade com que trata os temas das violências e das exclusões. A peça parte de um conjunto de três histórias reais, que a jornalista registou em entrevistas a mulheres na área do Grande Porto e que transformou posteriormente em peça de teatro.
A actriz Margarida Carvalho é muito sóbria na interpretação de três mulheres que partilham o sofrimento no feminino, ainda que as suas histórias sejam diferentes. Porque o texto não retrata a violência no contexto de um casal, antes põe o espectador a olhar para outros fenómenos de dominação sobre as mulheres, questionando permanentemente as fronteiras da própria ideia de violências de género.
Nesse sentido, a segunda história – uma mulher na casa dos 40 anos, urbana, com as vivências que qualquer pessoa numa cidade de média dimensão pode reconhecer – é a mais perturbadora. Porque, por trás de uma ideia de emancipação sexual, descobre-se um discurso de dominação masculina, que coarta permanentemente a sexualidade das mulheres: O discurso machista está mais enraizado do que por vezes somos levados a crer.
A opção de incluir essa história em “Onde o frio se demora” é feliz, porque reforça a recusa do estereótipo. Fá-lo com a clareza que o conhecimento da realidade que retrata e o grande esforço que faz é o de não maquilhar as histórias, dando o palco aos discursos tantas vezes invisibilizados das mulheres.