“Átomos”: A máquina perfeita

Atomos production shot. Photo by Ravi Deepres 13

Wayne McGregor é uma superestrela capaz de praticamente esgotar o grande auditório do Centro Cultural Vila Flor (CCVF), no dia 7 de Maio, apesar da comunicação tardia do espetáculo e da concorrência forte – o festival Dias da Dança decorria nos mesmos dias no Grande Porto. A dimensão planetária do criador britânico é suficiente para contrariar qualquer dificuldade e gerar uma expectativa imensa. “Átomos” não desiludiu, mas não conseguiu ser o espetáculo arrebatador que poderíamos imaginar.

A peça apresentada em Guimarães é bem ilustrativa do virtuosismo do coreógrafo britânico: é formalmente irrepreensível e belissimamente executada. Onde “Átomos” falha é na capacidade de tocar a tecla da emoção. Tudo o que é impressionante nesta criação é cerebral e, por essa via, frio. Racionalmente, fica-se esmagado com o trabalho que está em palco, a precisão dos movimentos, a inquietação filosófica que está na sua génese. Todavia, não há deslumbramento. E esse é um dos motivos por que vamos ver dança.

“Átomos” põe o corpo em relação com a tecnologia, para acentuar a ideia de que o corpo é a mais poderosa das tecnologias, a autêntica máquina perfeita. São corpos perfeitos os que vemos em palco, realmente. O espetáculo desenrola-se em três actos, assumindo uma estrutura formal clássica. De resto, esse é um dos aspectos que mais evidentemente salta à vista nesta criação: há um apelo classicista que terá tocado McGregor durante a criação, explicando o recurso a movimentos baléticos, que sobressaem sobretudo no momento primordial da peça, que é colectivo e harmonioso.

A partir daí, somos levados numa espiral de atomização – daí o título do espetáculo? –, que vai deixando os bailarinos progressivamente mais isolados, em duos e depois em solos. Os seus movimentos parecem tornar-se menos humanos e cada vez mais vencidos. Ao mesmo tempo, a tecnologia, por via da inclusão do vídeo e do brilhante trabalho de luzes de Lucy Carter, vai sendo mais e mais visível.

É esse o sobressalto que “Átomos” provoca: onde fica o humano no meio da imersão tecnológica? O espaço colectivo comprime-se até a um momento de explosão final. Desse ponto de vista, a concepção de McGregor é irrepreensível e a reflexão teórica particularmente certeira e alinhada com o espírito do tempo.

Bastará ler qualquer entrevista do coreógrafo britânico para perceber o seu fascínio pelo processo e o crescente interesse na relação do corpo com a tecnologia. A criação deste espetáculo teve o seu quê de laboratorial, com os bailarinos a trabalharem com um “’corpo’  artificial em tamanho real gerado digitalmente, que mimetiza o crescimento e o movimento que torna os corpos corpos”, como é anunciado no programa do espectáculo.

Não é, porém, evidente o resultado desse processo quando vemos “Átomos”. De resto, as intersecções tecnológicas na peça são algo falhadas. No que chamaríamos o segundo acto, o momento apocalíptico da peça, os espectadores são convidados a colocar óculos 3D para poderem ver o vídeo tridimensional criado Ravi Deepres que surge em meia-dúzia de ecrãs que ocupam o cenário. Todavia, o filme pouco ou nada acrescenta ao espetáculo, quer em termos visuais, quer em termos dramáticos, e é ínfima a sua relação com os intérpretes.

Pelo contrário, os óculos 3D e os ecrãs em palco parecem criar uma outra barreira na relação do espectador com o espetáculo, acentuando a frieza de “Átomos”. Dizia Tolstoi que “as famílias felizes são todas iguais”. Os corpos felizes também o serão. E o que vemos em “Átomos” são dez corpos felizes, perfeitos. Há uma precisão de movimentos e uma beleza que ninguém será capaz de questionar. Falta-nos, contudo, um momento em que sejamos capazes de atravessar aquela perfeição formal e sentir.