De entre todas as narrativas (esqueçam: não foi Sócrates quem inventou a palavra…) criadas à volta da crise, há uma especialmente perversa: A ideia de que as gerações mais jovens passam por dificuldades porque os seus pais e avós têm “excessivos” direitos garantidos. Suponho que a sensibilidade do tema seja a explicação para ter sido tão susceptível à questão geracional levantada pela montagem de “A visita da Velha Senhora” que Nuno Cardoso e o Ao Cabo Teatro apresentaram no sábado, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães.
Estamos em Güllen. E esta é uma cidade falida, de onde desapareceram todas as empresas e esperanças. Nuno Cardoso imagina-a, por isso, como uma cidade envelhecida. Daí que tenha feito particular sentido o convite à Companhia Maior – uma estrutura que agrupa actores e bailarinos com mais de 60 anos, que ainda se mantêm no activo – para dar corpo às personagens da cidade arruinada. Os mais jovens em palco são alguns dos actores que têm trabalho recentemente com o Ao Cabo Teatro, mas que interpretam sempre personagens estrangeiras à cidade – os jornalistas ou os múltiplos maridos da Velha Senhora.
Güllen é memória. E em palco, com a dezena e meia de intérpretes nascidos antes de 1960, há memória. Memória do teatro, mas também memória do país que Portugal já foi. Um encenador ainda jovem como Nuno Cardoso ou os actores com quem tem trabalhado não poderiam conferir essa densidade na relação entre dois tempos, pelo que a opção é um triunfo do espetáculo.
Foi (também) a falta de memória que trouxe Portugal e a Europa ao momento que vivemos hoje. E é (também) a falta de memória que nos tem criado tantas dificuldades em sair daqui. Nuno Cardoso faz uma escolha, que pode ser vista como um gesto político. O encenador volta a pôr-nos neste lugar desconfortável que é o de nos vermos em palco. Há um ano, “Medida por medida” punha William Shakespeare a olhar para nós. Nesse espetáculo, criado para a Guimarães 2012, partia-se de uma ideia de degradação moral causada pela abundância e as consequências nefastas desse movimento que afectaram a Justiça e a Política.
Há, pois, um claro ponto de contacto entre essa peça e “A visita da velha senhora”. A cidade criada pelo dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt em 1956, passa também por um movimento de degradação moral, embarcando numa espiral consumista que muda a cidade e os seus cidadãos. A diferença, porém, é de que este consumo não é motivado pela abundância, como na Viena de Shakespeare, é um consumo a crédito. Com preço altíssimo. Güllen aceita por isso tudo (até uma morte) em troca do seu resgate. Olhamo-nos ao espelho. Será a memória a salvar-nos?