Ficção: Podia ter sido em Paris

Madalena acordou sobressaltada, o coração batia descompassadamente e tinha aquela sensação de ter estado a cair num poço, aquela sensação que cessa ao acordar mas que deixa uma dormência desconfortável que impede os movimentos do corpo nos segundos imediatos. Ficou imóvel portanto, e respirou fundo. Não conseguia lembrar-se do sonho, mas sabia que não fora nada de bom. Olhou para o relógio e sossegou pois ainda faltavam vinte minutos para a hora que na noite anterior tinha decidido marcar no despertador. Levantou-se e abriu a portada da janela e deixou o Sol inundar-lhe o quarto. Sorriu. Ia ser um dia bom. Arrepiou-se e num movimento quase instintivo cruzou os braços agarrando os antebraços com as mãos ainda um pouco suadas, o mau sonho devia ter sido mesmo mau.

Havia gente na rua, a manhã estava soalheira, apeteceu-lhe abrir a janela e cheirar o dia. Assim fez mas não demorou muito tempo a fecha-la pois sentiu a brisa gelada e arrepiou-se de novo, então vestiu o casaco de cachemira que de tão velho já lhe tinha decorado todas as curvas do corpo e antes de se dirigir à cozinha abriu a torneira da banheira. Depois, ligou a máquina do café e bebeu um copo de água. Ansiava que o dia começasse, iria vê-lo de novo, e de cada vez que pensava nisso o estômago dava uma reviravolta. Fez o café e bebeu-o mas comer o que quer que fosse era simplesmente impensável.

Olhou para o roupeiro aberto e sabia exatamente que vestido tirar, tinha pensado nisso no dia anterior durante a tarde toda. Hesitou entre o vestido verde-escuro que tinha comprado no Natal e o preto, aquele preto que só usava em ocasiões mesmo especiais. Especiais para ela, não em festas. Usava-o apenas quando queria causar um determinado impacto em alguém, era um vestido que podia usar tanto de dia ou de noite pois era neutro, só fazia a diferença nos sapatos ou no casaco. Aquele vestido era discreto mas assentava-lhe como uma luva. Aprendera a usar o corpo como uma arma havia muitos anos. Não como uma metralhadora barulhenta e disparatada, antes como um revólver com silenciador, daqueles que se encosta às costelas e surte o efeito desejado sem ninguém para além do alvo se aperceber. E Madalena usava o seu corpo de forma discreta mas com eficácia total, jamais falhara. Foi com esta certeza que se decidiu pelo vestido preto, e retirava-o agora do roupeiro com o cuidado que ele lhe merecia. Estendeu-o sobre a cama e de seguida tirou os sapatos de verniz preto e contemplou a indumentária, satisfeita, prevendo o resultado e por dentro tremeu.

Quando entrou na banheira e sentiu a água quente envolver-lhe o corpo imaginou-se nos braços do homem que tanto a perturbava. Deixou cair o corpo até as nádegas tocarem no fundo da banheira e sentiu o vapor da água aquecer-lhe o rosto enquanto inalava o aroma que pairava no ar, cheirava a tangerina, ácido e doce ao mesmo tempo, “combina tão bem comigo”, pensou. Lavou o corpo lentamente, quase que se acariciava e talvez fosse isso mesmo que pensaria se alguém a visse de longe mergulhada na banheira. Madalena não conseguia parar de pensar no encontro que ia ter, era mais forte do que ela, e tudo o que fazia e sentia estava relacionado com esse momento. As suas mãos percorrendo o corpo macio e quente eram como veludo, e a sua pele reagia a cada segundo.

Lavou o cabelo e saiu, secou-se e permitiu-se exagerar no creme que aplicou no corpo. Adorava a sensação do creme hidratante no corpo, as axilas, os cotovelos, os joelhos, o pescoço e o peito, a barriga e as virilhas, as coxas e as nádegas, não descurou nenhuma parte. Tinha um corpo que correspondia à sua idade, não era musculada nem tampouco flácida. Era um corpo que lhe agradava e que lhe servia. Escovou os dentes, secou o cabelo, maquilhou-se e foi nua até ao armário de cuja gaveta tirou a roupa interior. Da gaveta abaixo dessa pegou num par de meias, calçou-as com cuidado e prendeu-as às ligas. Sabia que apesar da temperatura ainda um pouco fresca lá fora não iria sentir frio, estava demasiado agitada para ter frio. Calçou os sapatos, pôs o vestido e por cima o casaco de feltro, abotoou-o e apertou o cinto. Faltavam apenas as gotas do seu perfume favorito e estava pronta. Pegou na bolsa, verificou que continha a carteira e a chave de casa e saiu.

O elevador cheirava mal. Algum dos vizinhos trouxe um saco de lixo da véspera e não foi há muito tempo, sentiu nojo. Ainda assim susteve a respiração até a porta se abrir, mas antes ainda teve tempo de confirmar como estava no espelho do elevador.

Tempo morno, Madalena apostaria que não menos de vinte graus. Virou à esquerda e caminhou a ritmo certo mas devagar. Havia gente na rua, famílias com crianças e casais de velhos a passear. Eram onze e meia da manhã e também havia quem fosse tomar o pequeno-almoço, num dos cafés e pastelarias da avenida. Do outro lado da rua as pessoas entravam e saiam do centro comercial, o primeiro que fizeram na cidade, devia ter quase trinta anos. Ainda estava aberto, resistiam algumas lojas e tanto quanto sabia, uma pastelaria muito conhecida. O certo era que as lojas com montras viradas para a rua estavam todas ocupadas, o tipo de negócio tinha variado ao longo dos anos, mas havia negócio.

Não tardou a passar em frente ao hotel, e reparou no autocarro daqueles pequeninos, estacionado em frente, era alemão. Mais um grupo de turistas a visitar a cidade, era o tempo deles começarem a aparecer. Mal a temperatura subia com a chegada da Primavera, os turistas chegavam, ou em grupos metidos dentro de autocarros ou só casais a passeio ou famílias com crianças pequenas em miniférias. Sendo uma cidade pequena, tornava-se bastante atraente para casais com crianças pois podiam passear-se à vontade sem ficarem exaustos, a volta é pequena e não chateia se uma das crianças tiver de ser levada ao colo.

“Crianças” pensava Madalena, como gostaria de as ter, sonhava com isso desde nova, mas acreditava que o contexto tradicional era o mais indicado para ter filhos, com mãe, pai e de preferência também avós por perto. E ela, uma mulher sozinha, não considerava que tivesse condições para oferecer uma vida a uma criança. Talvez agora, que encontrou um homem que lhe mexe com as entranhas, talvez agora consiga vislumbrar uma centelha de possibilidade. E esqueceu-se do hotel e dos turistas e das crianças para voltar a concentrar-se no caminho que a levava até junto dele, quase que lhe sentia o cheiro, da última vez tinha ficado mesmo ao lado dele, e sentiu-lhe o perfume que lhe ficou gravado no cérebro e regressava de cada vez que pensava nisso. Acelerou o passo e nem reparou no grupo de rapazes sentados no café do outro lado da rua que já a miravam desde que deram com os olhos nela e a seguiram até que dobrou a esquina já ao pé da igreja. Subiu a avenida pelo lado esquerdo do jardim.

Adorava aquele jardim, que dependendo da época do ano era presenteado com flores novas, plantadas uma a uma por jardineiros carinhosos. Na quaresma, pintavam-no de amores-perfeitos roxos a condizer com as bandeiras que ladeavam os arbustos que faziam o contorno do jardim. Os saltos dos sapatos balançavam na calçada mas estava treinada para andar sobre qualquer tipo de piso mesmo com stilettos, não fosse ela a elegância em pessoa, parecia que deslizava sobre o chão e quase que não se lhe ouviam os passos, se não fosse uma mulher tão sofisticada quase que se poderia dizer que fazia de propósito para chegar sorrateira e surpreender, mas não, era-lhe natural, não fazia esforço algum.

Atravessou a rua e virou à direita para contornar a esquina à esquerda passando mesmo junto da esplanada repleta de ociosos que aproveitavam os raios de Sol primaveris. Notou que a estação da Via Sacra pegada ao muro do museu estava aberta e não resistiu a espreitar, atravessou de novo a rua para passar mais perto das imagens que a fascinavam. Eram velhas e desbotadas mas eram também tão expressivas que a emocionavam, e não conseguia fugir-lhes de cada vez que passava por uma das várias estações que havia espalhadas pela parte velha da cidade. Imaginava as mulheres que cuidavam delas, despachadas e trabalhadoras de mãos calejadas, talvez se revezassem no asseio das jarras, pois tinham sempre flores frescas, achava aquelas estações da Via Sacra maravilhosas.

@ José Caldeira

@ José Caldeira

Passou pelo museu e voltou a acelerar o passo, faltava pouco e o coração batia mais forte, cada vez mais forte. Teve medo das pernas, podiam falhar-lhe tal era a excitação que sentia. Viu a esplanada cheia, e estava espalhado no ar o cheiro a café e a croissants mornos, havia jornais e revistas nas mãos e nos colos dos clientes e rapazes a jogar à bola, eram normal ao Domingo de manhã naquela praça haver aquela agitação que curiosamente a acalmava. Respirou fundo e sentiu uma vertigem subir-lhe pelas pernas e pelas entranhas e entrou.

Viu-o sentado no sítio do costume, e não estava ninguém sentado ao lado dele. “É a minha oportunidade” disse-se, avançou e sentou-se, reconhecendo o perfume, toda ela tremeu e garantia que todas as pessoas ali notaram a sua perturbação mas esforçou-se por manter a postura. Ele olhou-a e sorriu-lhe, ela retribuiu o sorriso mas ele provocava-lhe uma emoção que não compreendia completamente pois a última vez que a sentira era ainda adolescente, virgem e inocente, e que a fez virar-se para a frente quase automaticamente, como que embaraçada. Arrependeu-se imediatamente de não ter olhado de frente para ele nem que fosse por mas dois ou três segundos, talvez ele lhe tivesse dirigido a palavra, talvez lhe tivesse sussurrado um “bom dia”. Ouviu a música e saiu da dormência em que entrara no segundo em que o viu. Benzeu-se, e começou a missa.