Por Pedro Jesus
Fotos: Hugo Lima (DR)
5 de Junho
São quase 18 horas e o sol abraça-nos logo à entrada do recinto do parque da cidade do Porto. É um gesto inesperado dados todos os avisos de chuva e porque de abraços vínhamos a contar apenas com os sonoros de Caetano Veloso.O cartaz deste primeiro dia da terceira edição portuguesa do Primavera Sound promete o mestre do tropicalismo mas também promete Kendrick Lamar, o celebrado novo mestre do hip-hop. O cardápio é intergeracional e diverso mas seguro pelo que as preces eram apenas devotadas aos deuses da meteorologia. Que o bom tempo se mantenha.
Cabe aos Os da Cidade a tarefa de inaugurar o palco principal do evento. As faces mais visíveis do projecto, António Zambujo e Miguel Araújo, foram presenteando o público com canções entrecortadas com interlúdios de bonomia, chegando a dedicar um tema à tenda VIP, por esta hora ainda vazia. Tempo agora de rumar ao Palco Super Bock, onde Rodrigo Amarante brinda o público com a sua voz melódica e arrastada. Os temas de “Cavalo”, cantados em três idiomas (português, francês e inglês), dão o mote a um concerto bastante aplaudido. Amarante agradece o entusiasmo com um sentido saravá axé. Os Spoon, verdadeira instituição norte americana de indie rock,são a segunda banda a pisar o Palco NOS, mas a nossa atenção já está centrada em Sky Ferreira, a menina de nome familiar, que surge em palco algo atabalhoadamente e já a pedir desculpas. Sky tira os óculos escuros para falar e volta a pô-los para cantar. As canções, essas, mesmo as mais dançáveis, são de corte confessional e parecem ter um calculado lado negro. Percebe-se que a cantora tem já uma legião de fãs, que entoam tema após tema, desde 24 Hours a Everything is embarassing, porventura o mais emblemático da ainda curta carreira de Sky, que tenta aventurar-se na língua de Camões com um “Obrigada” mal articulado. Já o trio das irmãs Haim (Alana, Danielle e Este) mostram habilidade em interagir com o público e Este, autêntica mestre de cerimónias, não se coibiu de debitar todas as expressões em português que havia decorado. E foram muitas. O público respondeu em modo eufórico e, uma coisa leva à outra, já Este incitava quem a ouvia: “shake your asses!”. Pedido aceite. A música das Haim parece talhada para festivais: refrões orelhudos, riffs e solos de bateria adornam e prolongam temas como Falling, Forever ou The Wire. Entre Sky Ferreira e as Haim podemos testemunhar a vitalidade de Caetano Veloso, que do alto dos seus setenta anos, ora salta, ora se atira para o chão, ora embarca em coreografias com a sua banda. E nada disto serve para mascarar problemas com a voz, que, imponente, continua em ponto de rebuçado, como podemos constatar em temas como Baby ou Tonada de luna llena. O alinhamento do concerto abarca o disco Abraçaço mas há lugar para temas intemporais e reconhecíveis como Leãozinho. O público aplaude. E os aplausos aumentam esmagadoramente de intensidade com a entrada em palco de Kendrick Lamar. O set será curto mas a entrega é evidente. E todas e cada uma das rimas são cantadas a plenos pulmões por várias tribos, que parecem ter esperado toda a noite pela estreia triunfante de Lamar.
6 de Junho
Chegamos ao belíssimo cenário do festival ainda na dúvida se este segundo dia será efectivamente um dia de primavera ou de inverno. Choveu durante a manhã e a tarde mas a impressão agora é que a primavera vence. Afinal parece morar na nuca e nos cabelos de muitos, mercê das muitas centenas de coroas de flores que se vão cruzando connosco. Já no Palco NOS as Warpaint vão pintando o ambiente com uma nostálgica versão de Ashes to ashes de David Bowie. E a nostalgia continua com a actuação dos regressados Slowdive, um dos estandartes da editora Creation nos idos anos noventa. É um concerto encantador e delicado, ideal para ser fruído sentado na relva. E num passo inusitado, trocamos a voz etérea de Rachel Goswell pela voz enraivecida de Black Francis dos Pixies, que trazem ao Porto um set urgente e sem espaço para conversas ou interlúdios. Quase em modo piloto automático temas como Debaser, Here comes your man, Monkey gone to heaven, Gouge Away ou Where is my mind? sucedem-se em ritmo vertiginoso. É um concerto de cariz quase antológico porque as canções do novo Indie Cindy passam despercebidas. Face à ausência de interacção com o público por parte do líder, é Paz Lenchantin, a recente contração para o lugar de baixista, quem distribui sorrisos simpáticos. Também Joey Santiago causa algum alarido quando pega em alguns dos ramos de flores e os faz interagir com a guitarra. Rock n’ roll! E do rock até à electrónica a distância foi de apenas uns passos. Da Dinamarca chegou até nós Trentmoller, com um set dinâmico que apanhou de surpresa os mais desprevenidos. Muito aplaudidas as coreografias robotizadas dos dois elementos femininos da banda em palco. E dança, muita dança. A dança prossegue mais à frente, no Palco Pitchfork, com a estreia dos DARKSIDE. Fazendo jus ao nome, Nicolas Jaar e o multi-instrumentista Dave Harrington apresentam-se num palco quase sem luzes. Já a sonoridade do duo mais do que sombria, é dada à languidez nocturna.
7 de Junho
É impressionante apercebermo-nos de que, não obstante a dimensão do Primavera Sound e o calibre dos nomes envolvidos, nenhum dos concertos começa atrasado (ou demasiado atrasado). A maior intransigência até ao momento parece vir dos Neutral Milk Hotel, que se apresentam no Palco NOS com os ecrãs desligados e com pedidos para não serem filmados ou fotografados. Muito mais comunicativo está John Grant, o homem simpático com ar de pescador de alto mar, como diz alguém ao meu lado. Exultante face aos aplausos, o cantautor interage com o público e repete a palavra “Azulejos” com prazer, recebendo mais aplausos em retorno. As canções de desarmante honestidade de Grant vestem diferentes roupagens. Ora electrónicas, ora acústicas. A voz é imponente e cada palavra é sentida. Destaque para os hinos de desamor que são Black belt e Queen of Denmark. Esta última é entoada em coro desde os primeiros versos: “I wanted to change the world, but i could not even change my underwear”. Finda a actuação, o público ruma em debandada para o palco principal, escolher o melhor lugar para ver The National. Ainda testemunhamos cerca de trinta minutos da devoção e comoção que a banda de Matt Berninger causa num público rendido e fiel mas, por esta altura, a curiosidade em relação ao fenómeno Charles Bradley fala mais alto. Os ecos de que Bradley era um colosso em palco foram confirmados por todos que se deslocaram ao Palco ATM. E foram muitos. Bradley irrompe como um furacão e parece trazer consigo o espectro de James Brown. Contagia irremediavelmente os presentes com temas de linhagem de soul, funk e R&B. Dá tudo que tem, sua em bica, mas consegue instalar a América profunda no Porto . Mesmo no final canta Why is it so hard (to make it America). Diríamos que aqui foi bem mais fácil. Por esta altura St. Vincent está já pronta para dar o concerto mais próximo da performance a que assistimos no festival. As canções de Annie Clark parecem pertencer mais ao palco do que a uma confortável audição em casa. Ao vivo soam mais compassadas, quase electrónicas. E Annie sabe como entreter uma multidão. E mais importante, como seduzi-la. Aos !!! são dadas as honras de fechar o cartaz do palco NOS e Nic Offer, o entertainer por excelência, também não se mostra tímido em interagir com as câmaras presentes. E menos ainda com o público. Provoca-o com as suas coreografias e depois com as constantes visitas ao fosso e com as ameaças de crowd surfing. Está instalada a festa.