Isto é uma praça!

Já sabemos que toda a zona de Couros está a ser requalificada e devolvida à cidade, após anos de degradação, desde que faliu toda a indústria do bairro operário mais antigo de Guimarães. Por acaso, sempre tive um fascínio por esta área, que cresceu na zona limítrofe à antiga muralha de Guimarães, literalmente por cima da ribeira chamada Rio de Couros, culpa do que por lá se fazia: os curtumes.

Antes disso, aquela área já deveria ter alguma utilidade, nem que fosse para plantar couves ou assim, e acredito que isto seja até uma metáfora do progresso: agricultura, curtumes, decadência. Agora, com o empurrãozinho de Guimarães 2012, vamos ter uma extensão da Universidade do Minho (Instituto de Design e Teatro Jordão), do Centro de Ciência Viva e de espaços para a instalação de projectos que envolvam criatividade e inovação. Acho que esta cena de curtir coisas velhas é mesmo pancada de criativo…

O bairro está todo em mudança, sente-se isso até nas pessoas, e não é difícil de compreender o porquê — basta imaginar o que seria viver na Ilha do Sabão a cair aos bocados e vê-la hoje. Além do mais, assim que começar a ganhar dinheiro para a minha vida, quero arrendar uma casa ali perto. Assim, vou poder dar por concluída a minha investigação sobre os lugares para o amor em Guimarães. Mais importante do que isso, sempre posso beber mais um copo nos bares do Centro Histórico sem ter de contar os trocos para o táxi… É como dar duas seguidas: ouro sobre azul!

Das vezes que passei no Isto é uma praça!, reparei que, qualquer que fosse o evento que estivesse a decorrer, estavam sempre moradores da zona por perto, quer a participar nas actividades, quer a dar todo o apoio necessário. Na festa de abertura da praça, o bairro estava lá em peso a dar uns pezinhos de dança, até altas horas. Ninguém reclamou do barulho. Com uma vizinhança assim, o projecto está ganho, mas tenho a certeza que as coisas não aconteceram por acaso.

Por isso, resolvi falar com o Fernando Martins, do projecto “Pop Up” — que gere a praça durante este ano — para me ajudar a contextualizar este texto e para nos dar pistas do que ainda está por acontecer.

Antes disso, quero relembrar de que há a iniciativa que conta com o apoio e curadoria do Bodyspace, a “Cinco concertos em fim de tarde” [sábados, às 19h]. Sei que já passaram pela praça os senhores Victor Herrero e Old Jerusalem, mas ainda vou a tempo de avisar o pessoal que, já neste sábado, vai ser possível ouvir The Partisan Seed e que, nos dois sábados seguintes, Filho da Mãe e JP Simões também andarão por lá. Os concertos têm sido perfeitos e, por isso, espero que os próximos sejam interpretados por vozes femininas, para a praça continuar a ser um lugar inclusivo.

VICE: A praça abriu em festa, a 29 de Junho, mas os habitantes de Couros já estavam altamente motivados. Queres revelar a fórmula?
Fernando Martins: É simples. Eles adoptaram o espaço e assumiram-se como anfitriões, porque fazem parte do processo. Ainda antes de chegarem os Esterni, fui a uma reunião de comunidade (de uma outra iniciativa da Câmara Municipal de Guimarães) e tentei explicar o que se iria passar aí. Claro que nem todos perceberam, pois isto não é propriamente uma coisa comum. Aliás, entre as pessoas que se disponibilizaram logo para ajudar, alguns questionaram-me de forma céptica o objectivo daquilo que pretendíamos fazer. Uma das coisas que mais me satisfaz contar é que essas mesmas pessoas são agora defensoras do projecto e zelam pelo espaço.
Ao longo do processo houve muito trabalho do coletivo e dos voluntários, não só prático e de construção, como de diálogo porta-a-porta com a vizinhança e com quem passava por ali e perguntava o que se passava. Por exemplo, a Mafalda, uma jovem lisboeta que trabalhou com os Esterni, ouviu cada uma das histórias e desejos dos moradores. Estes, percebendo a honestidade e vontade de quem ali trabalhava para melhorar o bairro, retribuíram com carinho e muita amizade. Estas coisas não se compram. Fazem-se acontecer de coração aberto.

Começamos bem, portanto. Além da requalificação de Couros, é evidente o envolvimento da população e a aposta numa programação sólida e, ao mesmo tempo, livre. Esqueci-me de alguma coisa?
Ui. Fica tanto por dizer. A questão é que esta porção de terreno tornou-se num local especial, aberto a todos, com o que de bom e de mau que daí possa advir. Em horas diferentes do dia acontecem dezenas e dezenas de momentos programados ou casuais, que possibilitaram uma experiência diferente, para todas as faixas etárias. Desde os jogos mais elaborados à simples possibilidade de poder fazer “casinhas e estradas” com pedaços de madeira, as crianças percebem sem explicação o potencial do espaço.
Depois, mesmo que não exista um evento planeado, há sempre um banco onde nos podemos sentar, ouvir os pássaros e a água do Couros a correr, sozinhos ou acompanhados. Mas se pensarmos bem, não há ali nada de extraordinário, para além de umas tábuas de madeira aplicadas com muita mestria. Todo o resto estava lá: as casas, o rio, as pessoas, para não falar nos tanques, onde muitos se sentam quando já não existe mais espaço na praça. Há espaços incríveis à espera de serem redescobertos, que só precisam de um pouco de atenção.

Bem verdade. Acredito que tens tido um feedback excelente do que se tem passado no espaço…
De facto, tenho ouvido muitas boas reacções ao projecto. E nem falo dos moradores, pois estes já fazem parte, à partida. O mais gratificante é mesmo perceber através de comentários descomprometidos que a cidade também adoptou o espaço como sendo seu. Um utilizador assíduo dizia mesmo que aquela era a nova “baixa” da cidade. Achei brilhante, porque o local encontra-se fora da rota da topografia vimaranense…
Claro que não existe bela sem senão, e alguns utentes da praça acabam por utilizar o espaço de forma menos apropriada. Há já alguns danos irreversíveis, mas, na minha opinião, também são sinais do processo de crescimento e de afirmação do espaço. Ser para todos implica também ser para os menos civilizados.

Claro. Agora que quase moras aqui, o que achas do local? Os vizinhos são fixes? Aposto que já sabes as cusquices todas.
É um local de muitas histórias, cusquices inclusive. Mas o meu sentido de ética impede-me de partilhar… Há gente muito boa aqui. Mesmo se, às vezes, estou a arrancar silvas, ou a arrumar mobílias ao sol, logo aparece alguém que começa a ajudar. E são óptimos conversadores. A Chiara Sonzogni que o diga. A jovem arquitecta italiana que tem estado desde do início do mês de Junho a encontrar formas de plantar vegetais pela praça, e não só, conhece toda a gente, que a adoptaram como sendo da família.

Vais ter saudades de tudo isto quando acabar, ou nem por isso?
Ainda não estamos lá, mas tudo faz prever que sim. E haverá muitos sítios no mundo a precisar de atenção…

Vens para Guimarães, começas logo a pensar em conquistas, concordo contigo. Para terminar, como é que o pessoal pode propor-se a organizar actividades para a praça?
Simplesmente, contactar através do Facebook, ou por e-mail, para o endereço pop.up@guimaraes2012.pt.

Fixe. Obrigado, Fernando!

 

Texto originalmente publicado na secção Gróia 2012 da VICE, com o título original “Paredes de Couros: em Guimarães, a música é outra“.