Guimarães, O Passado numa breve homenagem à cidade: Património fotográfico e literário, de Célia Fernandes

Quando se passa grande parte da vida a recolher memórias, imagens, palavras, a vasculhar os cantos das prateleiras e das gavetas, a mente do investigador entra numa realidade nebulosa onde o passado e o presente se confundem, onde os lugares se tornam fantasmas. Guimarães, sendo uma preciosa caixa de memórias, é também uma cidade palimpséstica, como qualquer memória. Este livro de Célia Fernandes não é um livro que sistematiza, mas um livro que confunde. E nisso é o próprio retrato desta cidade onde as pedras nunca encontraram lugar fixo, onde as muralhas, as torres, as portas, as árvores, divagam ao sabor das vontades de cidadãos que vacilam entre a reverência ao passado e a vontade de o reescrever. E é isso que torna Guimarães uma cidade particularmente poética, saturada de simbolismos que vão para lá da honra fundadora de um país tão indefinido na sua Glória e no seu destino quanto as profecias nacionalistas do Bandarra. Lânguida, serena, vetusta, rica, trabalhadora… são adjetivos que se sucedem em textos que se sucedem sem outra vontade que não a de nos confundir e questionar que cidade é esta que tanto nos pesa no peito, que tanta nostalgia nos provoca e que tão contraditoriamente nos apaixona pela sua gente miserável e infinitamente feliz, honrada e arruaceira. E Célia Fernandes provoca-nos com os textos que escolhe e que foi recolhendo deste e daquele autor, sobre o mito, sobre as gentes, as ruas, os trabalhos, os cheiros. E, entre o negro e o branco das fotografias, distribuídas sem razão aparente, há um diálogo desconexo mas tão cheio de sentido quanto a sucessão de episódios no “Alice no País das Maravilhas”, justamente citado pela autora no prefácio. Fragmentária ou fragmentada, cada peça apresentada não pretende informar, mas mergulhar o leitor ocioso e sedento de imagens do passado nas memórias que tomam formas vagamente reconhecíveis, como nas fotografias de um álbum encontrado num sótão alheio, onde as palavras escritas no verso aparecem na sua incógnita glória de pensamento arrancado a uma história que ninguém saberá contar nem reconstituir. Quem era esta gente que não deixou escritas as suas paixões? Que calaram elas entre as máquinas de fiação ou entre os eflúvios venenosos dos curtumes? Que vontades se perderam entre o aprumo fascista e orgulhoso do saudosismo das comemorações dos mitos fundadores? Que sensualidade estranha é a destas raparigas que encantam os escritores que delas falam como se o clima fosse mais quente e mais bafejado pelo Mediterrâneo, quando a chuva que se faz sentir nas paredes molhadas de granito é toda atlântica? É um livro de questões, não de respostas. Um poema de amor a uma cidade de “estreitos portais, escadas empinadas e miúdas gelosias”, onde se escondem olhares que nos fazem fantasiar romances que nunca acontecerão, roubados que foram ao nosso tempo, por um Tempo que, aqui, passa como não passa em mais lado nenhum.