Era uma vez um recreio chamado Mundo

“ Ainda crêem que pedagogiacomunidade é a arte de ensinar tudo a todos como se fossem um só.”

José Pacheco

Há um burburinho crescente que preconiza uma mudança. Mas não é uma mudança qualquer: é uma mudança que começa pela Escola e que inspira muitas outras esferas da construção social. A Escola tem sido ao longo dos anos reflexo das mudanças políticas, sociais e económicas, reproduzindo por isso o modelo social vigente. Se, por um lado, temos assistido à melhoria do acesso, ao desenvolvimento tecnológico crescente, a uma população mais qualificada e à diversidade de metodologias educativas, por outro lado há um lado negro que se expande e que tem sido o epicentro da angústia de alunos e educadores.  Deste lado negro, aparece terra fértil para algumas mudanças na Escola, cada vez mais virada para a Comunidade e menos para a institucionalidade (um movimento de dentro para fora e menos bancário, como temos assistido pela construção dos currículos educativos e das práticas pedagógicas).

Que força é esta então? Falo das Comunidades de Aprendizagem, um modelo educativo que procura promover ambientes onde a construção da aprendizagem seja realmente efectiva, colaborativa e participada por vários intervenientes, num espaço de partilha e interacção. Este modelo assenta em orientações teóricas humanistas e sócio-construtivistas já antigas como Carl Rogers (1984), Vygotsky (1978), Dewey (2002), Freinet (1928), Adolph Ferriere (1918) e que têm orientado o crescimento de inúmeros projetos educativos ao longo de todo o país nos últimos anos, a nível público e privado.

Para compreender melhor esta força que nasce na Escola, será pertinente introduzir o conceito de Comunidade que, na minha opinião, mais sentido faz e nos permite entender as necessidades e as vantagens que alguns projetos apresentam ao devolver a escola ao mundo, à rua, aos cidadãos, aos pais, aos filhos, à natureza,… Enfim, ao palco real da práxis que é o quotidiano e a partir do qual se constrói o conhecimento. Segundo Cohen (1985), a comunidade como construção simbólica (muito mais que um agregado de pessoas num mesmo espaço), é “a entidade à qual as pessoas pertencem, maior que as relações de parentesco, mas mais imediata do que a abstração a que chamamos sociedade. É a arena onde as pessoas adquirem as suas experiências mais fundamentais e substanciais da vida social, fora dos limites do lar“.  É este o palco para o desenvolvimento de um novo modelo educativo, fortemente político e social, que  interliga os símbolos da comunidade (muitos deles esbatidos pelas dinâmicas citadinas) com a necessidade da comunidade se reconstruir a si mesma, reclamando os espaços comuns que lhe pertencem com  mais qualidade a interacção.

Assentes nestes dois conceitos, há uma onda de projetos ligados à Rede Educação Viva que une várias iniciativas a este nível e que prometem nos próximos anos fortalecer práticas, estabelecer redes mais fortes e coesas e promover uma verdadeira revolução do ensino (dentro e fora do sistema formal). Bem aqui ao lado, em Vila das Aves, tivemos o educador José Pacheco, portuense, actualmente “exilado ” no Brasil como costuma brincar, que  desenvolve com a sua equipa em 1984 uma escola diferente: a Escola da Ponte, assente na Metodologia de projeto, do Movimento da Escola Moderna. Esta escola foi modelo estudado por vários países (inclusive a Finlândia que há décadas que analisou cá esse modelo e atualmente o colocou em prática a nível nacional) e inúmeros estudiosos. A Escola da Ponte expande-se, cresce e começa também a dar alguns sinais de dificuldade. José Pacheco vai em 2011 para o Brasil onde dá continuidade à sua visão de educação no Projecto Âncora, entre outros. Deixa a saudade e a ideia de que uma outra escola é possível, conforme fez ao longo de algumas décadas, nas suas aventuras contra o sistema de ensino formal: com q.b. de força e constrangimento.

Em 2014, visita todo o país e faz paragem em Guimarães para lançar um desafio: reclamem o vosso projeto educativo, aqui e agora, na vossa comunidade. Acrescenta ainda que “continuamos a utilizar nas escolas procedimentos medievais e que nos últimos vinte anos investimos verbas faraónicas no enfeitar de uma escola que continua prussiana.” Estive presente neste encontro, na livraria 9 Séculos, e posso afirmar que foi um momento de muito prazer, inspiração e reflexão. Vi e conheci muitos pais e educadores da nossa cidade e arredores verdadeiramente inspirados a fazer a revolução acontecer nas suas vidas. Alguns deles ainda hoje procuram o sentido (existe, a par, um sentimento de isolamento e de dúvida para quem sai do confortável carril do hábito), outros já colocaram mãos à obra com pequenos-grandes passos. Em Braga podemos assistir a alguns destes projetos e em Guimarães também: o Gomos da Tangerina.

As conversas em torno da educação têm-se repetido em loop: retalina e déficit de atenção, insucesso escolar, depressão nos professores, desmotivação, percursos especializados que especializam a mesmice. Os problemas reproduzem-se a uma velocidade herculiana. Eis então que surge o desafio: como criar uma zona de intersecção e de encontro, onde o tradicional se renova e bebe destes conceitos que, quando bem aprofundados, podem promover mudanças profundas na nossa forma de ser e estar em comunidade?

José Pacheco lançou agora um livro no Brasil – Escola da Ponte, uma escola pública em debate – pela Cortez Editora, no passado dia 6 de Maio, em Brasília. Fisicamente longe dos portugueses mas mais perto do que realmente almejou: denunciar a escola tradicional e anunciar a escola-mundo. Estou expectante pelo livro, sabendo de antemão toda uma história de dor que por cá ficou e que de alguma forma se renova pelos seus constantes regressos a Portugal onde dá formação a quem quer refazer a escola com a razão e o coração. Livres, na medida do sonho e da possibilidade.