Thurston Moore: consciência pesada

Foto Vera Marmelo

Foto Vera Marmelo

“O Chelsea era como uma casa de bonecas de A Quinta Dimensão, com um cento de quartos, e em cada um deles um pequeno universo. Eu percorria-lhe os corredores em busca dos seus espíritos, mortos ou vivos.

As minhas aventuras eram moderadamente atrevidas, como entreabrir ligeiramente uma porta para espreitar o piano do Virgil Thomson ou demorar-me junto da placa com o nome do Arthur C. Clarke, na esperança de que ele pudesse aparecer de repente.

Eu adorava aquele local, a sua delapidada elegância, e a história que ele ia mantendo com tanta possessividade. Havia rumores de que as malas do Oscar Wilde continuariam a repousar algures na cave. Fora ali que Dylan Thomas, alagado de poesia e de álcool, passara as suas últimas horas. Que o Bob Dylan tinha composto a “Sad-Eyed Lady of the Lowlands”. [*]

É assim que Patti Smith descreve as vibrações que recebia de um dos espaços mais emblemáticos da história das arte contemporânea e do rock ‘n’ roll em particular, pouco tempo depois de chegar a Nova Iorque e de se instalar no Chelsea Hotel. Quando Patti Smith chegou à cidade, encontrou um território em suspenso, com as ruas e os edifícios degradados e ao abandono. Era uma cidade suja e descuidada. Não obstante, era na Manhattan de então que muitos artistas optavam por se instalar, ocupando espaços informais e transformando-os.

No decorrer da década de 1970, muito por culpa da vitalidade que era impressa pelos artistas, os bairros da cidade voltaram a tornar-se conhecidos e vibrantes. Foram os tempos punk do CBGB e do aparecimento do movimento cultural que então emergia e que haveria de ficar conhecido por tornar a baixa de Nova Iorque novamente interessante. Ao longo deste processo de revitalização, os edifícios que estavam anteriormente ao abandono eram tomados pelo mercado imobiliário, à medida que voltava a ser chique ter um loft em Manhattan ou em Brooklyn.

Thurston Morre, nascido em 1958, muda-se para Nova Iorque em 1976, vindo do Connecticut, altura em que conhece Patti Smith e William S. Borroughs, nas sessões de música e poesia. Moore, então com 19 anos, vê os The Cramps e os Suicide, no Max’s Kansas City, e fica siderado. É já no final do ciclo iniciado por Patti Smith que Thurston Moore embarca na cena post-punk e no-wave, numa altura em que a downtown de Nova Iorque passava a receber de forma consistente miúdos das escolas de arte de todo o mundo.

No final dos anos 1970, conhece Kim Gordon e Lee Ranaldo, que por essa altura já andava a explorar as novas possibilidades das guitarras eléctricas e a experimentar novas formas de afinação, no ensemble de guitarras liderado por Glenn Branca. Em 1980, na altura em tocava nos The Coachmen, Moore estreita o relacionamento com Gordon, com quem se haveria de casar em 1984. Mais tarde, em 1981, encontram-se com Lee Ranaldo durante um concerto do Glenn Branca Ensemble e desafiam-no para um projecto conjunto.

A banda, que antes de se designar Sonic Youth actuou sob diversos nomes, aparece em pequenas apresentações em galerias de arte, ainda sem bateria. Há quem avance que a designação final de Sonic Youth surgiu como forma de homenagear o nome de Fred Sonic Smith – guitarrista dos MC5 e mais tarde marido de Patti Smith. Moore, Gordon e Ranaldo iniciam então aquele que viria a ser o trajecto de uma das bandas mais carismáticas dos anos 1980. O seu som desenhava-se de forma característica e particular, devido à forma como usavam as guitarras e combinavam afinações exóticas.

A dada altura, Thurston Moore confessava que a afinação das guitarras chegava a demorar mais tempo do que a duração de alguns temas. Para colmatar esse intervalo nos concertos, Moore passou a levar um gravador, que ligava aos amplificadores de forma a permitir ao público algum tipo de experiência sónica. Mais tarde os Sonic Youth passaram a ser conhecidos por levaram consigo para os concertos dezenas de guitarras, algumas delas para serem utilizadas em apenas um tema.

Talvez devido a essa forma particular de tocar guitarra que tanto Thurston Moore como Lee Ranaldo são considerados dos guitarristas mais influentes do último quarto de século. Além do trabalho que desenvolveram nos Sonic Youth, envolvem-se num número impressionante de projectos paralelos com outros músicos. Além da música, é notório o trabalho que passam a desenvolver também noutros domínios artísticos.

No final de 2011, o futuro dos Sonic Youth torna-se incerto, após o anúncio da separação do casal Gordon-Moore. Antes de 2005, Thurston Moore começou a trabalhar num projecto editorial que viria a culminar na publicação do livro “Mix Tape: The Art of the Cassette Culture”. A ideia do livro partiu de Eva Prinz, responsavel por uma editora de arte, por quem Moore se envolveu numa relação extra-conjugal, que manteve em segredo.

Apesar de nunca terem surgido quaisquer comunicados oficiais, nem de o prórpio Thurston Moore assumir o fim da banda, os Sonic Youth cessaram funções por tempo indeterminado. Sobre esta paragem, Moore explica que os Sonic Youth já não conseguiam cativar o público nos concertos e que, devido às vidas pessoais de cada um dos elementos da banda, era evidente que a banda precisava de uma paragem. O último concerto dos Sonic Youth foi em São Paulo, no dia 14 de Novembro de 2011.

Logo em 2012, o hiper-activo Thurston Moore surge com um novo grupo – Chelsea Light Moving mas, segundo ele, tratou-se de uma cena passageira: “Chelsea Light Moving foi uma banda de transição, tendo em conta que estava de passagem para Londres. Na altura apenas quis manter-me ocupado” – afirmou numa entrevista ao The Stranger, de Seattle. De qualquer forma, Thurston desdobra-se em colaborações várias. O seu trabalho é tão vasto que se torna difícil seguir. Além das colaborações musicais, gere a sua prória editora, a Ecstatic Peace, à qual se junta mais recentemente a Ecstatic Peace Library.

No início de 2015, o músico reúne os seus colaboradores para gravar um novo disco do Thurston Moore Group, colectivo que passou por Portugal, no Primavera Sound, no Porto, nesse mesmo ano, onde tocou no palco All Tomorows Parties (Patti Smith passaria pelo mesmo festival no dia anterior). Para a gravação do novo disco, Moore convocou a baixista Deb Googe, dos My Bloody Valentine; James Sedwards e Steve Shelley, o seu companheiro de sempre nos Sonic Youth.

Não foram precisos mais de cinco dias para a gravação dos nove temas que farão parte do novo disco, que se chamará “Rock ‘n’ Roll Consciousness”. O disco foi gravado em Londres, no estúdio The Church, com o produtor Paul Epworth, o mesmo que produz Adele. Antes de tomar a decisão, Moore torceu o nariz à sugestão do seu amigo Mark Stewart (dos The Pop Group). No entanto, Epworth mostrou grande interesse em trabalhar com Thurston Moore e os dois lá se entenderam. Os temas foram misturados, alguns deles com Randall Dunn, dos Sun O))). O disco é descrito como um regresso à proeminência das guitarras e à exploração dos diálogos das Fender Jazzmaster.

O paralelismo que se procura recriar neste texto entre Patti Smith e Thurston Moore não é despropositado. Em 2015, Patti Smith passou pelo Porto, num concerto comemorativo da edição de “Horses”, que saiu em 1975, um ano antes de Moore ter chegado a Nova Iorque. Na altura, a opinião generalizada foi de que estaríamos a assistir a um concerto raro de um dos ícones maiores da história do rock. Patti Smith é de facto uma figura incontornável da cultura contamporânea. Na mesma linha, os Sonic Youth são incontornáveis em qualquer história do rock dos anos 1980 e um dos símbolos da Nova Iorque daquela altura. Na impossibilidade de vermos os Sonic Youth (pelo menos para já), torna-se absolutamente necessário não deixar passar a oportunidade de estar com um dos maiores embaixadores do rock das últimas três décadas.

Thurston Moore Group está na décima edição do Manta, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, num concerto de entrada livre.

[*] excerto de “Apenas Miúdos”, de Patti Smith. Edição portuguesa pela Quetzal, com tradução de Jorge Pereirinha Pires.