Mucho Flow: música em primeira mão

Fotografia: Paulo Dumas

Fotografia: Paulo Dumas

Concertos é algo que vai aparecendo cada vez mais regularmente por Guimarães. É sinal positivo de que a cidade vai teimando em sair de um período em que quase nada além do institucional se passava. O bulício regressou à rua Padre Augusto Borges de Sá, onde decorreu mais uma edição do Mucho Flow, no segundo sábado do mês de Outubro.

O cartaz apostou uma vez mais no arrojo das propostas, num conjunto de 12 concertos mais um DJ set, que se dividiram em três espaços. Havia uma expectativa crescente à medida que as horas foram passando. Expectativas que umas vezes foram correspondidas, outras não. Por outro lado, houve surpresas agradáveis no primeiro tempo do festival, numa altura em que o sol ainda iluminava a rua.

A maratona dos concertos arrancou com Sallim, o nome pelo qual se dá a conhecer Francisca Salema, que trouxe a Guimarães um conjunto de canções consistente, embrulhadas na simplicidade do som limpo de uma guitarra elétrica. O primor dos arranjos de “Isula”, o disco lançado este ano, faziam antever uma pop etérea, com letras tão delicadas, que impediam a intérprete de tirar os olhos do chão. A voz de Francisca Salema aguentou-se muito bem, fazendo valer o poder lírico do seu canto.

A possibilidade de ocupar uma rua poderia ter sido aproveitada para experimentar outras possibilidades, outros motivos de interesse, que um espaço ao ar livre, habitualmente vedado a estes usos, proporciona. Quando começaram os concertos não havia outra coisa a que o público se pudesse abeirar que não fosse a banca da cerveja.

Foi precisamente de copo de cerveja que Pedro Ribeiro e Gil Boucinha ocuparam o palco da rua. A apresentação de Captain Boy, aqui em formato redux, antecedeu o lançamento de um novo single do músico de Guimarães – “Honey Bunny”. As canções por aqui aparecerem mais despidas e ganham em imediatez e em determinação, sem lugar para subterfúgios. É um teste às canções. E as canções de Captain Boy passaram com distinção.

O número seguinte, previsto no cartaz do Mucho Flow indicava Lourenço Crespo, que se fez acompanhar apenas de um piano eléctrico e fez ainda lembrar um outro concerto de há dias com B Fachada. Mal Lourenço inicia o concerto foi como se de um dejá-vu se tratasse. O seu registo é um pastiche do homem do fandango ensaiadinho. É bom ver os aspectos positivos: primeiro, que não será mau de todo ser comparado com B Fachada; e depois que B Fachada tem descendência assegurada quando voltar a deixar de cantar. Mas enquanto vai e não vai, preferimos o original.

O Palco Mucho foi inaugurado pelo projecto Radioscope#2 e as experiências sónicas com base em sintetizador. O sons de Jorge Quintela encontravam espelho visual na projecção de teias monocromáticas. A apresentação fez lembrar um vídeo disponibilizado pela NASA há dias, com aquilo que poderá ser o som que se ouve no espaço, caso pudéssemos ouvir o barulho do cosmos. Não deixa de ser curiosa a sugestão que é feita em Radioscope#2 sobre a música do futuro que, ao que tudo indica, continuará a ser feita com recurso a instrumentos analógicos.

Do outro lado do CAAA, onde aconteceu o Mucho Flow, situava-se Joana Guerra, munida do seu violoncelo, um instrumento que impõe respeito e que deixava alimentar alguma curiosidade sobre o que dali resultaria. Joana Guerra é um dos nomes do rooster da Revolve – a editora, produtora e promotora do Mucho Flow. Guerra teve um primeiro debute, em 2013, com “Gralha”.

O silêncio é muitas vezes associado à ausência e a algo negativo (a ausência da luz). Joana Guerra parte do silêncio e explora-o, como uma tela que se preenche com cores (não muitas). Talvez devido ao cariz do instrumento, há um classicismo pop de canções sem formato, misturados com a voz em trejeitos jazz. É notória a formação clássica de Joana e é interessante perceber como os limites da caixa são transpostos, com o uso de pedais loopstation ou o slapping nas cordas do violoncelo.

O concerto que viria apresentar o disco novo dos Toulouse era um dos momentos de que mais se falava na plateia. O disco “Yuhng” foi lançado dias depois do Mucho Flow e a banda anda numa pequena tour de apresentação. Em palco, confirmaram todos os motivos pelos quais andávamos impacientes. A banda tem a capacidade de estabelecer empatia com o público e à medida que o concerto avança, vai crescendo.

As músicas mantêm-se fiéis àquilo que conhecemos de apresentações anteriores, desde que a banda apareceu em 2014. Se em disco é curiosa e agradável a lembrança que nos traz dos Stone Roses, ao vivo, a banda “Yuhng” surge com apegos ao indie rock da escola onde andaram uns The Drums, os The Horrors ou ainda os DIIV. Bom, portanto.

Por esta altura já DJ Lynce, que mais tarde ficaria encarregue de fechar a noite, garantia os interlúdios entre os concertos. E, de volta ao Palco Mucho, esperamos ouvir Memória de Peixe apresentarem o novo disco (que foi lançado entretanto). Já havia muito tempo que não nos encontrávamos com o duo. Em 2012 fizeram ondas com um registo de estreia.

Foi com satisfação que recebemos a notícia de um novo disco e que este seria apresentado em ante-estreia em Guimarães. As composições parecem menos permeáveis, com as teias das guitarras de Miguel a estarem mais intrincadas e preenchidas. A bateria de Marco Franco (que substituiu Nuno Oliveira) surge mais poderosa, porventura mais orgânica e menos mecanizada. É diferente, não é melhor nem pior. É igualmente bom e soube bem tê-los de volta.

As frequências graves no PA do Mucho Flow viriam a ser testadas com os ingleses NAKED que trouxeram a Guimarães sonoridades industriais em letras capitais. A apresentação terá sido das mais enérgicas do dia, não só pelos graves em distorção que causavam taquicardia, mas também pela irrequietude da exótica Agnes Gryczkowska. Os NAKED apresentaram recentemente o disco “ZONE”. Nine Inch Nails de Trent Reznor andou por aqui.

Do outro lado da antiga fábrica, no Palco Revolve, um quarteto ostentando bastas cabeleiras negras e lisas apoderava-se daquele espaço, por esta altura já completamente cheio. Taigen Kawabe, vocalista e baixista dos nipónicos Bo Ningen, lançava caretas engraçadas à assistência, ao mesmo tempo que a banda assinava um dos momentos mais curiosos desta jornada, sustentada num rock com ligações ao noise e ao funk. Se Miyazaki fizesse um filme sobre música rock, estes quatro japoneses seriam fortes candidatos para o elenco.

Voltando o bico ao prego (que é como quem diz, mudando de palco) estava Nite Jewel, que passava por Guimarães para mostrar o seu novo disco. Este era o último concerto da tour europeia de “Liquid Cool” pelo que a cantora de L.A. estava particularmente entusiasmada pela ideia do regresso a casa. No entanto, essa excitação não suficiente para que o concerto fosse entusiasmante. Nite Jewel desfilou o alinhamento synth-pop com rasgos de voz que a espaços faziam lembrar Kate Bush. Foi assim-assim.

Finalmente, a fechar os concertos esteve Blanck Mass, já passava das duas da madrugada, o que explicará que a nave da blackbox do CAAA se apresenta então meio cheia. Benjamin Power é uma das metades dos Fuck Buttons. Fresco está ainda o disco “Dumb Flesh”, lançado pela insuspeita Scared Bones. Mais uma vez, as paredes voltaram a tremer tal a energia que trespassava os corpos. Benjamin explora barulhos de elementos orgânicos, processando-os e misturando-os com injecções de massa electrónica, que ao vivo soam mais perturbantes. Mais uma vez ficamos com falta de ar.

Foram mais de dez horas de música. Treze apresentações em três palcos. Aqui a música vale por si e o Mucho Flow não precisa de máscaras para esconder ou amplificar aquilo que é. Torna-se importante perceber, numa altura em que se cumpriu a terceira edição e em que vários eventos do género vão aparecendo na cidade, de que forma se cose o tecido cultural de Guimarães com estes novos dados em cima da mesa. Movimentos artísticos como este, desde que genuínos nos seus propósitos, afiguram-se como alavancas na renovação e na capacidade de atracção das cidades e, convenhamos, Guimarães cheirava a mofo em alguns quintais.

Nota: Falamos de todos menos de Bruxas/Cobras. Uma ausência que se esperava rápida prolongou-se mais do que o suposto, o que impediu que não pudéssemos assistir ao concerto do rendez-vous de Ricardo Martins e Pedro Lourenço. O primeiro a ser já uma figura habitué no Mucho Flow. Aos músicos as nossas desculpas, assim como aos nossos leitores ociosos.