Durante bastante tempo, porventura tempo demais, andamos a discutir a validade da música feita em Portugal. Depois do boom do rock português e da música moderna portuguesa – catalogações que foram surgindo nas últimas décadas – houve um período de nojo, que terá descaracterizado e desclassificado a música portuguesa de alguma forma.
Não sou dos que pensa que haja algum mal em importar géneros que não são nossos, mas que, de alguma forma, se tornaram universais, tentando adaptá-los ou sintetizá-los à nossa maneira. Hoje há um rock português, um punk português e até um jazz português. Há também, naturalmente, pop português. É possível a apropriação destes géneros na sua essência, substituindo pelos nossos alguns tiques estranhos. Felizmente, há hoje muitos exemplos felizes, que bem o provam.
Portanto, por esta altura, já estará ultrapassada a questão de aceitar a música feita em Portugal, como estando ao nível do que de melhor se faz em qualquer lado. É verdade que ao ouvir pela primeira na rádio “Time”, dos We Trust, ou “Hang Out”, dos Best Youth, não tirei à partida que se tratavam de bandas portuguesas. Não será arriscado dizer que nunca se fez, em Portugal, música tão facilmente exportável e de tão boa qualidade, como nos últimos, vamos dizer, dez anos. Também nunca tivemos uma geração de músicos tão competentes e talentosos. Ou por outra, nunca como agora estiveram tão bem reunidas as condições para manifestar aquela competência e aquele talento.
Estas evidências terão levado tempo a consolidar-se, aproveitando talentos latentes, que em boa altura foram estimulados. Tanto as facilidades como as dificuldades serão hoje outras, mas serão essas condições presentes que nos permitem chegar a um concerto de Bruno Pernadas com grande expectativa e assistir a uma dezena de músicos, com um elevado nível de talento e de conhecimento, neste caso proveniente desse condomínio que é a Pataca Discos.
Bruno Pernadas é por si só um músico extraordinário. Se só em 2014 se estreou nas edições em nome próprio, com o surpreendente “How can we be joyful in a world full of knowledge”, ele já andava por aí antes, com Julie & The Carjackers. Iniciou-se e formou-se nos domínios do jazz, desde que ingressou na escola do Hot Club de Portugal, tendo colaborado e participado em combos de variadíssimos músicos. Em 2016, voltou a surpreender lançando dois discos: “Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them” e “Worst Summer Ever”.
A entrada de dez músicos, num palco que não é muito grande, é sempre um momento que é seguido pela assistência com particular interesse. Como peças que se vão ajustando ao seu sítio certo. Pelo PA passa o som de “Blue Hawaii” que nos ajuda a concentrar a atenção toda para o palco, à medida que as vozes da gravação são substituídas pelas que cantam em tempo real. Esse momento é crucial para perceber o que se passará a seguir, como uma mudança suave de dimensão. Não há um programa específico, a não ser o alinhamento de “Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them”, o que não é coisa pouca.
Um concerto pop de Bruno Pernadas é como um exercício de zapping – fossem todos os exercícios de zapping tão enriquecedores. A comparação não será tanto pela qualidade, mas pela quantidade. A quantidade de referências que o líder Pernadas combina, para que cada compasso surja como algo surpreendente. Tanto podemos bater o pé ao som do easy-listening, de “Spaceway 70”, como abanar a cabeça ao som na rockalhada de “Ya Ya Breathe”, a fazer lembrar o melhor que os Pixies conseguiram fazer (cá estão os estrangeirismos).
O concerto de 23 de Setembro no gnration foi o segundo de apresentação do disco que entretanto ficou conhecido como “Crocodiles”. Estes concertos são momentos muito particulares e especiais. O disco foi apresentado em Lisboa, em Braga e em Coimbra. Durante pouco mais de uma hora o programa foi servido sem mácula, sustentado numa equipa de músicos notáveis que se distribuíam pelo naipe de metais, na secção rítmica, nas vozes e nos teclados. Não deve ser fácil reunir todos estes músicos, muitos deles com trajectos próprios ligados à editora Pataca Discos.
Se há vinte anos havia uma certa aversão ao que era português e à música portuguesa em particular, o que originou, nomeadamente, uma regra bacoca que obrigava as rádios a passarem música portuguesa, hoje chegamos a duvidar se tal realmente aconteceu, já que uma regra do género não se afigura necessária.
Portugal mantém-se igual em muitos aspectos, mas mudou em muitas coisas e melhorou em algumas delas. Com certeza que haverá indicadores que traduzam que a música portuguesa está a atravessar um dos melhores momentos da sua história. Para quem não tem paciência para indicadores, que se limite a sentir. A música portuguesa está no ar e há uma geração que se encarrega de a tornar bela. Bruno Pernadas será um dos expoentes exemplares de que há um motor criativo que põe este país a mexer e sobre o qual recaem as grandes esperanças sobre o seu futuro.