Bons Sons: memórias de um beijo

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“Ele pediu-me para que nos beijássemos, mas eu não deixei. Ele insistiu: – Já somos namorados há tanto tempo, que já é hora de nos beijarmos. Eu não deixei que ele me beijasse e o namoro acabou” – esta é uma das recordações de uma das habitantes da aldeia de Cem Soldos, que participou no documentário “Este Povo”, apresentado no auditório da Casa do Povo de Cem Soldos.

A sala estava cheia, com pessoas sentadas no chão, onde quer que houvesse espaço, apesar do calor intenso que marca estes dias e o interior da sala, em particular. Era notória alguma familiaridade na plateia, de onde vinham as reacções de graça, felicidade e de alguma vaidade pela realidade que estava ali a ser mostrada. E orgulho também, manifestado pelos entusiásticos aplausos no final da projecção. O filme, realizado por um conjunto de jovens de Cem Soldos, resulta da recolha de depoimentos, com vista à perpetuação da memória dos cem soldenses, principalmente os mais anciãos.

O cinema marcou o primeiro dia do festival Bons Sons, na sexta-feira, 12 de Agosto. Após a exibição de “Este Povo”, passaram uma série de curtas-metragens e ainda o documentário “Auto-Rádio”, realizado por Gonçalo Pôda, sobre a digressão dos 33 dias consecutivos de Benjamim, durante o lançamento do disco. O filme retrata aqueles dias em que dois músicos e um técnico de som percorreram o país inteiro. A apresentação do documentário no Bons Sons não foi programada por acaso. Uma das datas, que se encontra retratada no filme, foi em Cem Soldos, há um ano.

Esta programação, que cruza outras disciplinas além da música, resulta de um conjunto de parcerias com que se construiu o Bons Sons. No caso das curtas-metragens a organização do festival trabalhou com outro festival – o Curtas em Flagrante, que desde 2010 funciona de forma itinerante.

Outras das parcerias é com o projecto de Tiago Pereira – A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (MPGDP). O primeiro dia do festival começou precisamente na Igreja de São Sebastião, no coração da aldeia, onde é apresentada a programação do palco MPGDP. Ao início da tarde, no pico do calor, ouviram-se as vozes do cante alentejano e da guitarra campaniça. A seguir, no mesmo espaço, esteve João e a Sombra – projecto musical do “barão” João Tempera.

O dia corria tórrido e o corpo pedia hidratação constante. As estreitas ruas de Cem Soldos tornam-se enormes com este calor, na altura de as percorrer, para ir de um local para o outro do recinto. Na verdade, Cem soldos é muito pequena. A aldeia desenha-se nas fachadas brancas com o rebordo das janelas num amarelo queimado pelo sol, conferindo-lhe a carga pitoresca do imaginário colectivo.

No Palco Giacometti passaram Pega Monstro e Birds Are Indie, conseguindo preencher o Largo de São Pedro que, juntamente com o coreto, que serve de palco, é já uma das imagens mais características do Bons Sons. Os indignu [lat.] vieram apresentar o disco novo “Ophelia”, que sairá lá mais para o final de Outubro. A eles voltaremos nos próximos dias.

Os palcos grandes do festival reservavam propostas distintas. De um lado o Palco Lopes-Graça, num registo folk e, do outro, o Palco Eira com dois projectos do Porto, muito ligados a texturas que recorrem a instrumentos electrónicos.

Os Danças Ocultas apresentaram-se com a Orquestra Filarmónica das Beiras, com quem gravaram “Amplitude”, saído em Fevereiro deste ano. Quem ali esteve saiu de coração cheio. Toda a carga emotiva da orquestra, juntamente com as quatro concertinas, foi forte para arrancar os sonoros aplausos, que se fizeram ouvir pelas estreitas ruas da aldeia, até às planícies circundantes. No mesmo palco, a Kumpania Algazarra instalou o tom festivo no Largo do Rossio, com recurso ao folk klezmer que fizeram a imagem do grupo.

No Palco Eira, os Best Youth libertaram toda a sensualidade que têm sempre para libertar nos concertos, muito por responsabilidade de Catarina Salinas. Os Sensible Soccers lavaram a plateia ao transe colectivo durante uma hora, fazendo valer os créditos que foram coleccionando, com mais frequência, desde que lançaram “Villa Soledade”. Tanto uns como outros estão entre os projectos musicais mais estimulantes da música feita em Portugal no tempo presente.

Depois, Cláudia Duarte levou a noite até ao dia seguinte, de volta ao Largo de S. Pedro. A playlist começou com ritmos e batidas dançantes, desde o disco, ao house de 80s e ao new disco de agora. O indie tomou conta do manto verde que cobre o largo, à medida que o cansaço ia empurrando os menos resistentes para o campismo. Às seis da madrugada a música parou e o povo pediu mais, porque isto de viver a aldeia não é para meninos.