Bons Sons: e depois do adeus?

Foto Paulo Dumas

Foto Paulo Dumas

É segunda-feira, 15 de Agosto – o último dia de Bons Sons. Ainda há muita música para ser tocada, mas muita mais já se ouviu, o que insiste na necessidade de um balanço ainda por fazer nestes textos – este é um festival de música e portanto, será sobre música que deveremos escrever, por mais encantatórios que sejam os poderes da vida na aldeia.

Esta segunda-feira última de Bons Sons ainda nos reserva nomes em cartaz que são incontornáveis, como os de Gonden Slumbers, Lula Pena e Jorge Palma. Mas, à medida que vemos alguém a passar com as trouxas às costas, torna-se difícil que não nos afecte uma certa nostalgia pela proximidade do fim da experiência.

O concerto de Flak estava marcado para o início da tarde, na igreja. O eterno guitarrista dos Rádio Macau tornou-se senhor do altar, mostrando ao público, que enchia todos os bancos corridos do templo, alguns temas dos seus álbuns a solo.

A figura carismática de Flak, com os seus cabelos desgrenhados, já grisalhos, a fazer lembrar o Pat Metheney, encantou mais os presentes do que propriamente os temas novos. Toda a gente estava ali na esperança de ouvir ao vivo temas antigos. Pois foi exactamente desta forma, anunciando que a música seguinte tinha uns bons anos, que Flak se atirou a “O Elevador da Glória” e depois a “Amanhã é Sempre Longe Demais”.

A visível satisfação do artista encontrou perfeita correspondência do lado da assistência. Trocaram-se sorrisos e agradecimentos. O concerto tinha conseguido o seu propósito e vislumbravam-se à saída olhares que não escondiam a estranheza do que ali se testemunhou – de repente, num templo dedicado à oração e à espiritualidade, um concerto transformara-se mesmo numa celebração gospel.

A próxima paragem foi no icónico coreto ao fundo do pequeno Largo de S. Pedro, onde estava o Palco Giacometti e as Golden Slumbers prontas para mais um momento de comunhão. Catarina e Margarida Falcão saíram do seu quarto, onde começaram a compor, partiram para espalhar a mensagem e no princípio do ano anunciaram um “The New Messiah”.

São canções singelas e delicadas que interpretadas com recurso às harmonias das duas vozes femininas e ao som essencialmente acústico, conseguiram ter a escala certa para o concerto no coreto de Cem Soldos. A candura é a mesma que ouvimos nos discos de Laura Marling (de quem Catarina e Margarida são admiradores declaradas) ou então a força incisiva dos textos, que fazem lembrar Suzanne Vega.

Lentamente, a luz da tarde tornava dourados o ar e as fachadas das casas. Há uma rua em Cem Soldos que está exactamente alinhada na direcção do pôr-do-sol. É por essa mesma rua que, nos meses de Verão o ocaso é sempre épico.

Lula Pena é uma mulher bela, esguia e de voz imponente. Voz e guitarra e os pés descalços, enroscados um no outro para altear o suficiente a viola. Lula é uma artista com um admirável culto nacional e internacional. Cultiva-se a sua voz, o seu canto e o seu mistério. O sol posto no embalo de um lamento silencioso.

Ainda no último dia, Jorge Palma poria uma conclusão no Bons Sons de 2016 (no que aos concertos diz respeito, os D’Alva ainda fariam o corolário no Palco Eira). Palma fez uso do conjunto irrepreensível de canções, que são suas, mas que são já de toda a gente.

Jorge Palma conquistou por mérito próprio o direito de viver dos êxitos da sua já longa carreira. E fá-lo muito bem. Deu um concerto absolutamente electrizante, muito por responsabilidade dos músicos incríveis que o acompanham.

EPÍLOGO
A aldeia de Bons Sons transformou-se durante dois dias para celebrar a música portuguesa, de todos os géneros. Cem Soldos é, assim, a aldeia da música portuguesa. Ao longo destes dias foram vários os artistas que exultaram a sua vontade de que aquela aldeia se tornasse um país inteiro.

Não deixa de ser curioso que nos vários palcos do festival terem sido os concertos mais pequenos e intimistas que apresentaram os projectos mais estimulantes, nesse tal reencontro com as raízes, onde todos se sentem confortáveis, sem perceberem muito bem porquê. Aos poucos, a música portuguesa volta a gostar dela própria.

Quatro dias incríveis de concertos absolutamente arrebatadores. Destaques para Best Youth e Sensible Soccers no primeiro dia ou os novos domínios da música portuguesa, que podiam ser de qualquer lado, mas que são nossos.

No segundo dia, as apresentações de Grutera, Lavoisier, Tiago Pereira e Cristina Branco irão com certeza ficar na memória. Dear Telephone, Tim Tim por Tim Tum, Isaura arrebatadora a mostrar o poder da pop, Keep Razors Sharp e Carminho para nos lembrar de que somos feitos. No último dia Golden Slumbers, Lula Pena e os cantares do grupo Sopa de Pedra encheram-nos o peito.

Cem Soldos tem, normalmente mil habitantes. Nestes dias recebeu 32 mil pessoas. As casas abrem para receber. As adegas transformam-se em locais de repasto ou em lugares para apresentações alternativas ao programa proposto pelo festival. A raiz da nossa existência está aqui muito perto. Desejamos um lugar assim tão pacífico para viver e é por isso que Cem Soldos se torna tão especial.