Muitas vezes vemos escrito que um filme é “poético”, que certo plano é “poesia” ou que o cineasta não é um realizador qualquer “é um poeta”.
Mas será que isto existe mesmo no Cinema? Se as diferenças essenciais entre poesia e prosa são a rima e a contagem métrica das sílabas, será que conseguimos descobrir algo semelhante no audiovisual? Com este texto vou tentar defender que sim, que isso existe, e explicar como é feito. É apenas uma explicação que, espero eu, nos aproxima do que certos cineastas tentaram fazer.
Grande parte do discurso sobre o Cinema é centrado numa analogia – a Gramática cinematográfica – que compara a linguagem verbal à linguagem cinematográfica. Dentro desta comparação um frame é uma letra, um plano a uma palavra, cada cena é uma frase, cada sequência um parágrafo, e o filme é o texto. Esta analogia pode ser muito simples, até simplista, mas ajuda muito a oferecer uma explicação acessível do que um cineasta tenta fazer à maior parte das pessoas.
Se a poesia na linguagem verbal funciona através da rima e da contagem métrica, usando a analogia da gramática cinematográfica conseguimos perceber já que a poesia no Cinema passa por uma certa organização. Se um plano equivale a uma palavra, as rimas visuais entre planos correspondem às rimas sonoras entre palavras. Se um frame equivale a uma letra, a contagem do número de frames equivale a fazer a contagem métrica das sílabas. Se o número de cenas dentro de cada sequência corresponde ao número de frases, percebemos que cada cena corresponde uma frase, e cada sequência a uma estrofe. Temos assim todos os elementos equivalentes da poesia verbal e os seus equivalentes no Cinema.
Podemos passar para um exemplo. Em “The Searchers” de John Ford, John Wayne interpreta Ethan Edwards que volta a casa do irmão após anos de ausência. Temos o seguinte plano no ínicio do filme:
E um travelling para fora da casa revela Ethan Edwards, uma figura pequena no canto inferior direito da imagem:
(Não sei se será possível ver muito bem neste tamanho, mas a sequência está disponível para visualização no Youtube aqui – http://www.youtube.com/watch?v=Fy2-abqR8B4)
Poucos dias depois de voltar a casa do irmão, esta é atacada por índios que matam a família do irmão e raptam a sua filha. O resto do filme segue Ethan Edwards enquanto este persegue o grupo de índios responsáveis pelo rapto e no fim, Ethan encontra a rapariga e volta a casa para a devolver à família.
A cena acaba com o seguinte plano.
Não há razão nenhuma para Ford enquadrar novamente John Wayne desta maneira – a cena podia desenrolar de qualquer outro ângulo onde a ação seja visível e o seu propósito continuava claro. Na realidade, a cena começa noutro enquadramento, e ele troca para este no fim. O plano é semelhante, contudo sabemos que a habitação e o local não são os mesmos (a habitação do ínicio do filme foi destruída no ataque dos índios). Mas com esta rima Ford dá-nos informação adicional, nunca enunciada claramente no filme: Ethan, após tanto tempo em guerra e perseguição dos índios Nativo Americanos, tornou-se também num guerreiro sem lar. Ele não é capaz de aceitar uma volta a uma domesticidade que nunca conheceu. Ford usa muitas vezes na sua obra o espaço negativo (preto ou branco, sem informação nenhuma) para criar a impressão de solidão. Aqui vemos Ethan Edwards, que veio sozinho do deserto, volta sozinho ao deserto.
A rima relembra-nos do primeiro plano em que vimos a personagem e reforça a narrativa que John Ford está a tentar transmitir. A rima melhora a nossa compreensão do filme, e permite uma ligação que na sua ausência não seria óbvia. Podemos então, usando a ideia de gramática cinematográfica dizer que Ford rimou no inicio e no fim do poema.
Encontramos outro exemplo de uma rima visual, construída através do movimento de câmara (ao invés de enquadramento, como Ford fez em “Searchers”) em “Mulholland Drive” de David Lynch.
Na primeira cena, uma personagem vem levantar alguns dos seus pertences à casa de Naomi Watts:
De repente ela repara que lhe falta algo – o seu cinzeiro em forma de piano. A câmara segue-a e avança para a frente, em direcção à mesa agora vazia, o que chamamos de ‘travelling‘ para a frente.
Na cena imediatamente a seguir, temos todas as aparências de que mantivemos a continuidade temporal. Naomi Watts está a terminar de fazer o seu café e aproxima-se de Laura Harring. Esta cena contêm alguma nudez ou como se diz pela net, é NSFW.
Podemos até tentar traduzir o que Lynch fez para palavras. Mas é exercício fútil. A poesia existe apenas nas imagens.
Existem muitas interpretações do filme, mas acho que “Mulholland Drive” estamos perante uma indicação de Lynch sobre a estrutura do filme, e que nos ajuda a interpretá-lo – é um filme feito de duas metades, e este é o ponto onde percebemos que Lynch vai oferecer agora uma nova narrativa ou perspectiva sobre o que acabamos de ver. Percebemos neste ponto do filme que Lynch quebrou a continuidade narrativa, mas a rima mantem o espectador orientado. Ele podia apenas ter repetido um enquadramento, ou mostrado novamente a mesa, mas a rima com o movimento de câmara ajuda a salientar o pormenor do cinzeiro de maneira que isso se mantêm na nossa cabeça durante o resto do filme. Bem interpretado, é uma das chaves de um filme cheio de enigmas – ao invés de nos explicar com palavras ou texto, Lynch explicou-nos a sua estrutura narrativa utilizando apenas imagens e rimas entre elas.
A poesia no Cinema contemporâneo pode ser encontrada em muitos autores, em variados níveis de complexidade e compreensão. Contudo talvez a sua utilização mais vulgar seja também a mais óbvia, cansativa e pobre, aquilo ao que chamamos de campo-contracampo.
Isto é o nome dado ao seguinte conjunto de planos
Campo:
Contra-campo:
Muitas vezes acompanhado por um plano mais aberto para estabelecer o espaço:
O cinema hoje em dia pode ser reduzido a uma série de rimas, sim, mas essencialmente são sempre a mesma (como a música pop, talvez, onde parece existir uma lista de palavras pré-aprovadas para rimar, “amor”, “calor”, etc. etc.). Realmente, mantendo a analogia da gramática cinematográfica, as rimas são sempre as mesmas palavras, a repetirem-se constantemente. Talvez a melhor analogia para o campo-contracampo e a pobreza proveniente de imagens no Cinema atual encontre mesmo um bom paralelo no mundo da Música, onde quatro acordes são utilizados há décadas para produzir centenas de “hits” musicais. http://www.youtube.com/watch?v=i4_f6pfabQk
Vamos falar apenas de mais um caso. Ozu Yasujiro, realizador japonês, trabalhou durante décadas no indústria japonesa do Cinema na sua época de ouro (na qual rivalizaram com Hollywood no número de produções). Ozu trabalhou uma maneira de fazer cinema extremamente cuidada e completamente individual, dizendo uma vez “Construí toda a minha forma de realização na minha cabeça, sem imitação desnecessária de outros.” A sua técnica viola muitas das regras da linguagem inscritas desde D.W. Griffith que ainda estão presentes no cinema até hoje.
Podemos olhar logo para a maneira como Ozu abre o seu último filme – “Uma Tarde de Outono”.
Ou o ínicio do seu filme de 1960 “Outono Tardio”
Agora o que é interessante sobre estes planos não é só o seu conteúdo mas a sua duração. Todos estes seis planos, em dois filmes diferentes com anos de diferença, possuem a mesma duração – sete segundos. Isto significa que Ozu mediu a sua duração para conseguir uma rima métrica, conseguida apenas através da limitação do tempo dos planos, tal como fazemos o mesmo ao contar as sílabas na poesia escrita, para manter a mesma duração dentro da estrofe ou do poema.
Ozu utiliza este tipo de conjuntos de três planos repetidamente durante o filme, ou seja, ele estabelece aqui um ritmo para um certo de tipo de estrofe dentro do poema. Podemos ver pelos dois ínicios que temos um padrões de rima tal como existem no Português. Em “Outono Tardio” temos um claro padrão AAB, ou seja, dois planos muito semelhantes que são quebrados por um terceiro plano, que não rima com eles. Como a duração é igual são no entanto parte de uma estrofe conjunta.
Ozu também reformula o esquema campo-contracampo.
Campo:
Contracampo:
Mesmo durante cenas de diálogo, Ozu era reconhecido por quebrar as regras – aqui ele filma as duas pessoas de maneira perpendicular, e de um ângulo invulgar – a maior parte dos realizadores filma este tipo de cenas a partir do nível dos olhos do mas Ozu filma sempre a 2\3 da altura do actor. Ao mesmo, Ozu mantinha o seu ritmo métrico – mesmo durante as cenas de diálogo, Ozu era conhecido por manter um cronómetro consigo e contar cada actor ao segundo, para depois conseguir na montagem a contagem certa em cada plano de cada actor durante uma cena como uma conversa.
Ozu era também conhecido por alterar a ordem dos objectos nas mesas. Temos aqui um exemplo, particularmente no canto inferior direito do contracampo, podemos ver que os dois objectos cúbicos, um laranja e outro branco, trocaram a ordem em profundidade. Se um está mais próximo da câmara no campo, o contrário devia acontecer no contracampo, mas a sua posição é igual – o cubo branco está mais próximo da câmara em ambos os planos. David Bordwell acredita que Ozu fazia isso para ter uma pequena rima visual através da cor presente nos planos.
Ozu construiu a sua obra a partir de um sistema de realização cinematográfica que ainda é completamente único no mundo. Não conheço nenhum outro que terá desenvolvido um sistema de tal maneira completo e com tal complexidade como Ozu. A sua preocupação constante com rima visual, contagem métrica dos planos e construção da narrativa através de rimas e estrofes é um exemplo de criatividade e dedicação extrema. É também o exemplo mais claro de todos: Ao criar uma série de versos que rimam e ao medir cada uma das suas palavras, Ozu está claramente a fazer poesia.
Na realidade, Ozu construiu todo o seu sistema de realização através de limitações métricas e visuais que imitam a poesia na literatura.
“A poesia no Cinema” tem sido ignorada. Não é preciso ser assim, e existem autores populares, tendo como seu exemplo máximo Steven Spielberg, que a usam como recurso, mesmo que para conteúdos que os críticos muitas vezes julgam duvidáveis (quando isoladas da poesia, talvez o sejam, mas mais importante é reconhecer a sua capacidade de rimar). Em Honk Kong, Johnni To Kei-Fung trabalha com parcos recursos em relação aos poderosos realizadores de Hollywood, possui imenso sucesso comercial e será dos realizadores atuais que mais utiliza a rima visual e narrativa lança de 2 a 3 filmes por ano. A Arte Cinematográfica está em perigo de desaparecer, com um número cada vez menor de salas e de audiência, mas não há razão alguma para ignorarmos os feitos daqueles que conseguiram elevá-la.
– Rafael Kino
Para ler mais sobre Teoria de Cinema e Poética no Cinema, podem ler o blog de David Bordwell e Kristin Thompson – Observations on Film Art – é sem humildade nenhuma que o autor reconhece a enorme dívida que lhes deve, em particular ao seu livro sobre Ozu, disponível em .PDF gratuitamente online.