O Fantasma do “Não Vais”

Novais Teixeira, como dizia alguém próximo dos ociosos, não fez nada na vida a não ser conhecer pessoas importantes. Se calhar, foi assim. Por isso entende-se que uma homenagem cinematográfica ficaria sempre manca e condenada a vários fantasmas – aos fantasmas das encruzilhadas e dos cemitérios, entre outros fantasmas com menor capacidade condenatória. Quem segue um caminho rural pouco iluminado à noite sabe bem que é nas encruzilhadas que se escondem todos os fantasmas fugidos dos cemitérios. Novais Teixeira saiu de uma Pátria cheia de fantasmas em direção a constantes encruzilhadas – e desse percurso de exilado, levava, ele, algo da terra onde nasceu? Confesso que o filme não me fez crer, pelos testemunhos apresentados, que o Novais fosse particularmente vimaranense. Aliás, o filme parece apostado em provar o contrário. Porque o filme não é sobre Novais Teixeira, mas sobre Guimarães e sobre o olhar que alguém tem sobre uma cidade que carrega em si, sempre, uma aura de aurora, de início e de uma certa sonolência ou languidez. Mas é um filme de alguém “de fora”, com algum fascínio fantasmático pela cidade, à espera de que sejam os fantasmas a revelarem-se, tomando a realizadora, Margarida Gil, o papel do fantasma da alteridade, do outro e do alheio: o universo de Guimarães não é, em nada, o universo da realizadora – e isso, se trará algum desconforto ou olhar crítico ou ofendido por parte de alguns vimaranenses a tantos pormenores factualmente errados que se insinuam na ficção, consegue, paradoxalmente, ser o que lhe permitiu apanhar algumas pérolas.

O filme propunha-se a aliar a ficção com o documentário – o que é vulgar nos dias de hoje, mas que já deu melhores frutos. Desde o “F for Fake” de Orson Welles que o caráter fantasma e falso do documentário deu origem a uma categoria de filmes que, através da imagem, confundia os limites entre a verdade e a mentira. Esperava algo dentro dessa convenção. Mas o filme parte de uma premissa mais simplista e que me parece quase o reflexo de um pânico que se terá tomado conta do projeto coagido a tomar forma definitiva dentro de prazos curtos, como acontece, aliás, com a personagem que serve de fio de ligação entre os vários fragmentos documentais do filme. Fio de ligação esse que sofre de alguma debilidade conceptual, quase “escolar” e que, no seu caráter ficcional nunca nos dá a sensação de ser algo verdadeiro, que é o mínimo que se pretende da ficção. Os comentários em volta do computador onde se guardam testemunhos sobre Novais não funcionam, simplesmente. Há, contudo, elementos muito bem conseguidos e que funcionariam dentro de uma estrutura coesa que partisse de um outro caminho ficcional. Não foi assim, e é pena, porque o galo que serve de ouvinte à menina que desenvolve o projeto sobre o Novais, bem como a reação espontânea e improvisada (onde verdadeiramente a ficção se confunde com o documentário) da senhora Joaquina perante o rapaz preguiçoso que tem a doença do sono (e nem sequer uma referência a São Elias – como é possível, em Guimarães?) são momentos de grande qualidade cinematográfica e só por eles vale a pena ver o filme.

Se Novais teve uma vida feita de outras vidas, Guimarães é também, e acima de tudo, os vimaranenses. E pertencendo eu a esta terra, que me adotou como nenhuma outra o fez, confesso que me deliciei com os “cameos” da gente que faz parte do imaginário contemporâneo vimaranense, como a Dona Augusta da Adega dos Caquinhos com as suas inevitáveis “caralhadas” (e ainda assim muito abaixo do que se poderia fazer com tal material em mãos), o Carlos Mesquita como fantasma ou alguns dos nossos ociosos, como a Adriana ou o Paulo Cunha em duas das cenas de maior valor, deu-me um especial gozo, mais bairrista que cinéfilo, confesso. A cena das freiras a dançar podia ter outro desenvolvimento e prometia também mais do que deu; a cena da personagem interpretada pelo Paulo Cunha, porém, é um dos momentos altos do filme, numa passagem com referências buñuelianas mas que a mim sabiam mais a Fellini, muito à conta da capacidade histriónica e controlada de um olhar lascivo conjugado com um belíssimo deadpan em tudo identificável com o universo do “Amarcord”.

Outra referência que, tanto quanto sei, só existe na minha cabeça prende-se também com o estudo do olhar e da face humana presente em Bergman. Mas a debilidade do pretexto ficcional do trabalho que está atrasado, e da amiga que pede ajuda a outra (não se percebe bem para fazer o quê) não consegue transpor para as reações emocionais das mesmas o mesmo diálogo simples e profundo que vemos, por exemplo, nas reações faciais dos espetadores da Flauta Mágica de Bergman, intercaladas com a representação da ópera.

Depois, há que dizê-lo com frontalidade: qual é a vimaranense que diz “serrabulho”? E que raio de coisa era aquela que estava na panela?  E desde quando é que os mil folhas são bolos de Guimarães (se eu comer um pastel de nata em Paris, isso faz do pastel de nata um bolo parisiense?) ? Num filme cujo público alvo é, sem sombra de dúvidas, o público de Guimarães, é de esperar alguns sorrisos amarelos na assistência. Porém, este olhar desenraizado e altero de um estranho a uma realidade tão coesa e ciosa da sua identidade, como é a população de Guimarães, acaba por valer a pena e é essencial que este filme volte a passar pelo menos uma dúzia de vezes em Guimarães.