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“O Dom das Lágrimas” é a mais recente curta metragem de João Nicolau, encomendada pela Capital Europeia da Cultura e que estreou ontem (hoje à noite, quando escrevo) no Cinema São Mamede. A sala, composta, mas não tanto quanto deveria estar, tinha a estranha presença de crianças de muito tenra idade. Caso para, cinicamente, perguntar quem é que se tinha lembrado de levar ali o Jardim de Infância. Cinicamente, digo bem, cinica e injustamente, até porque as crianças, e aquelas que ali estavam em específico, eram em grande parte autoras do filme, atrizes também e… não bastando isso, serviram-me ainda como guia de interpretação de um filme cujo esoterismo cinematográfico me colocou perante os quadros de que é composto com a mesma perplexidade com que os alquimistas neófitos olham para as pranchas do “Liber Mutus”. Se o Dom das Lágrimas serve de mote para uma história tão desconexa no seu onirismo geográfico, histórico e mental, o Dom do riso destas crianças permitiu-me ter uma primeira revelação quanto ao significado íntimo e místico dos cabelos em cascata dourada saindo de uma janela do Paço dos Duques. Um homem, em algo semelhante a um João-Sem-Medo decide ir à caça (talvez de gajas loiras, jeitosa fauna que povoa o imaginário do filme e que fará aos de fora julgar que por cá abundam), respondendo de forma insolente a uma voz para lá de uma porta onde não entramos, mas de onde saímos, como se saltássemos as muralhas vizinhas a “Chora que Logo Bebes”, entrando num universo tão encantado e nonsense quanto o de José Gomes Ferreira. O ritmo do filme, saltitando de forma despreocupada e misticamente empenhado num mantra qualquer que não nos é dado a ouvir, tende a uma purificação cuja chave é-me, curiosamente, dada por uma citação de “Rapace”, outro filme de 2006, do mesmo autor, e que foi apresentado logo a seguir: “o ritmo é o som de Deus desidratado”. Entre lágrimas junto a um rio Selho inauditamente expurgado de vestígios de poluição (magia do cinema?) e as pesadas pedras da Penha, indiferentes aos ataques de vandalismo da personagem que as quer esmigalhar à força de lhes bater com um pau ou com um calhau, a um ritmo e intensidade diferente das obras que revolveram o Toural e que aparecem de relance, restam os fantasmas de quem aqui se perdeu, trazendo consigo fantasmas que julgava ter deixado para lá dos limites de uma terra que não faz mais que os recuperar a cada passo. E a cada passo, reconhecemo-nos como os irredutíveis fantasmas de que todas as histórias são feitas, faltando-lhes, para se dessedentarem, quem sabe, apenas o dom do riso das mesmas crianças que choram e que, através das lágrimas, transformam as paisagem em aguarelas – em fantasmas, em nós mesmos. Em nada que uma lágrima, ou um riso, não consiga definir com a mesma clareza e autoridade de um rio.