É o último dia de escola e cinco irmãs festejam o início das férias brincando com rapazes na praia. O que seria uma atividade inocente, torna-se o catalisador para o enclausuramento das meninas a cargo do tio conservador e a avó que as criou após a morte dos pais. A trama passa-se numa pequena vila turca na costa do Mar Negro, a mil quilómetros de Istambul, símbolo da liberdade para a irmã mais nova e narradora, Lale. Esta dicotomia entre a vila e a cidade revela as idiossincrasias da sociedade turca, em que a modernidade e progresso entram em conflito com tradição e fundamentalismo religioso.
Denunciadas por uma vizinha, dizendo que estas estavam a usar os pescoços dos rapazes para se masturbarem (por andarem sentadas nos ombros destes), as ações das irmãs são vistas como blasfémias. Na discussão inicial em que a avó as reprime severamente, deparamo-nos com a irreverência libertária de Lale que a acompanhará ao longo da narrativa. Lale começa a destruir cadeiras, afirmando que as estas também estão sujas já que elas sentam os seus rabos nelas. A partir daqui, começamos a assistir ao encarceramento das meninas. São proibidas de sair de casa, todos os seus objetos que promovam a “corrupção” são-lhes retirados, as suas roupas são trocadas por longos vestidos “cor de merda”, não voltam à escola, e aos poucos passam a viver, nas palavras de Lale, numa “fábrica de esposas”. Esta “fábrica de esposas” revela o papel submisso e quase mercantil que a mulher tem nestas sociedades. Elas devem ser “puras”. As irmãs são obrigadas a efetuar testes de virgindade e treinadas para ser boas esposas, o que implica saber cozinhar e tratar dos assuntos domésticos, para posteriormente serem exibidas e negociadas pela família para o casamento.
Este enclausuramento e sua motivação fez-me lembrar o filme The Apple (1998) da realizadora iraniana Samira Makhmalbaf, que denuncia um caso real que aconteceu no Irão nos anos 1990, em que duas irmãs foram enclausuradas em casa, sem nunca terem ido à escola, apresentando graves problemas cognitivos. Como justificativa, o pai diz que “uma menina é como uma flor e se o sol brilha sobre ela, ela perde a cor. O olhar do homem é como o sol e a menina é como uma flor”. E prossegue: “É como colocar algodão perto do fogo: será consumido”. Há uma ironia devastadora nesta crença. Por um lado há este puritanismo fundamentalista que advoga que a mulher deve ser pura, mas o problema parte da própria sociedade que sexualiza a mulher desde tenra idade e vê pecado sexual em tudo.
E já não bastasse isto, assistimos a um problema transversal a muitas sociedades e culturas, o de culpabilizar a “vítima”. Vemos no mundo ocidental, por exemplo, culparem uma mulher que tenha sido violada, sugerindo que esta é que deveria ter atenção no que veste ou sítios que frequenta. E aqui assistimos ao mesmo de uma forma extrema. A mulher é enclausurada, escondida e privada de uma vida normal e digna por haver uma hipersexualização por parte do homem, reduzindo a mulher a objetos passíveis do seu desejo e posse.
O que a realizadora Deniz Gamze Ergüven faz com graciosidade e de uma forma poética é contrastar este destino cruel que lhes é imposto com a vivência e candura das irmãs, aliadas aos seus atos rebeldes que se intensificam e se tornam denunciadores de um contexto patriarcal opressivo. Fechadas em casa e sendo constantemente reprimidas, assistimos às irmãs rirem, brincarem, trocarem experiências, segredos; vêmo-las a ser adolescentes e a descobrir a sexualidade e os seus corpos de uma forma saudável. Tudo isto envolto num universo narrativo em que num momento descontraído e até de humor, é contrastado de imediato por um episódio emocionalmente violento. E apesar da individualidade e personalidade de cada uma, vemos estas irmãs quase como um organismo só.
São muitas as cenas dotadas de uma belíssima fotografia em que vemos as meninas deitadas juntas, abraçadas, com os seus longos cabelos, revelando uma cumplicidade encantadora. Esta união intensifica-se pela naturalidade da prestação das cinco protagonistas e os espaços e decoração da casa, em que há um contraste entre a fantasia dos seus quartos brancos e iluminados com o realismo cru dos restantes espaços. Além da proximidade do enredo, é nesta parte da narrativa e cenografia que surgem as comparações mais óbvias a The Virgin Suicides (1999) de Sofia Coppola, baseado no romance de Jeffrey Eugenides. A tragédia etérea das irmãs Lisbon em muito se parece com a das irmãs de Mustang, mas enquanto The Virgin Suicides sentenceia a liberdade, em Mustang há esperança.
Aos poucos, o organismo começa a dissolver-se com as irmãs a tomarem destinos tão distintos. Selma, uma das irmãs mais velhas, é obrigada a casar com um indivíduo que não conhece, sendo a sua tremenda infelicidade na festa do casamento estrategicamente notada pela irmã mais nova, Lale. Sonay, a mais velha das cinco irmãs, mantém um relação secreta com um rapaz, e consegue ver a sua vontade de se casar com ele ser concedida. Ece tem um fim trágico e revoltante. Ficamos a saber que Nur é alvo de abusos e, aquando do seu casamento, une-se ao desejo de Lale em fugir para Istambul. Lale é a figura mais complexa da narrativa. Sendo a irmã mais nova, é ela a líder revolucionária que lida de forma resiliente com as mudanças bruscas que ocorrem na sua vida. A atriz que lhe dá vida, Güneş Nezihe Şensoy, sobressai no seu papel de menina irreverente e convicta de si mesma e dos seus objetivos.
Ergüven ao denunciar uma sociedade conservadora, não peca a retratá-la de forma tendenciosamente maniqueísta. Embora o tio das meninas seja o protótipo do homem machista, violento e conservador, há outros personagens masculinos que não têm este tipo de posição face à mulher. Yasin, amigo de Lale e que a ensina a conduzir, é exemplo disso, desenvolvendo um papel fundamental na libertação de Nur e Lale.
O título Mustang é uma referência aos cavalos selvagens, cujo nome deriva de uma palavra do espanhol arcaico que significa “sem dono” e “selvagem”. A procura da liberdade por parte das irmãs, com os seus longos cabelos, fazem lembrar estas criaturas. Em entrevista a realizadora refere que as irmãs “were like supernatural, otherworldly creatures (for me) with their long hair, which was reminiscent of a horse’s mane”.
Mustang foi uma poderosa estreia da realizadora Deniz Gamze Ergüven, nascida na Turquia e radicada em França, com argumento escrito pela mesma e por Alice Winocour (Augustine, 2012). Em Mustang, o poder do cinema denuncia uma sociedade que limita a liberdade individual e serve de alerta para as condições em que muitas meninas e mulheres vivem, não só na Turquia mas em qualquer parte do mundo. Que essas as meninas libertem o Mustang que há em si e que todas encontrem a sua Istambul.