As personagens são negros, transsexuais, prostitutas, emigrantes e pobres. Os universos são os das sub-culturas do boxe e do hip hop. São as margens a dar fôlego ao cinema. É isso que faz a força de “Tangerine” e “The Fits”, duas produções independentes norte-americanas que foram os primeiros filmes exibidos na edição deste ano FEST, festival de cinema que decorre em Espinho até à próxima segunda-feira.
“Tangerine”, de Sean Baker, foi o filme de abertura do festival (em ante-estreia nacional), enquanto “The Fits” (realizado por Anna Rose Holmer), era a primeira longa-metragem da competição. Mas, apesar de terem sido exibidos em contextos diferentes, os dois filmes dialogam bem. Não apenas por chegarem ambos dos EUA, território que, apesar da esmagadora força da indústria de Hollywood, tem sido sempre capaz de manter um fértil campo de produção independente. Mas sobretudo pelo que de estimulante e novo trazem, não só em termos temáticos, mas também estilísticos.
O filme de Baker foi a sensação indie do último ano nos EUA e tem merecido alguma atenção mediática por ter sido parcialmente rodado com recurso a Iphones – algo que, para efeitos estilísticos ou narrativos não tem relevância alguma para a forma como “Tangerine” é construído. Aliás, essa referência repetida desmerece aqueles que são os principais méritos da obra: o território em que acontece e a sua proposta visual, com referências ao universo do hip hop (lembra-se “Rize”, de David La Chapelle), o convívio entre uma estética algo “trashy” e referências mais erudita (há tanto Lynch na cena da performance natalícia no bar), e a montagem frenética que nos transporta para dentro do mundo intenso das suas personagens.
Onde o primeiro é furioso, “The Fits” parece muitas vezes assumir uma maior influência do cinema “de autor” europeu, com alguns planos longos e contemplativos. A experiência do espectador beneficia dessa opção, que permite viver os momentos de “pausa” na voragem que se vive dentro do cérebro de Toni, a sua personagem central – talvez mesmo a única personagem do filme. O filme é de resto primoroso em termos visuais. A fotografia é irrepreensível e a opção pela profundidade muito campo curta coloca-nos sempre “em cima” da personagem, quase sentindo os seus medos e desejos.
Ambos os filmes partilham também o mesmo universo e uma mesma temática. Estas personagens vêm de territórios de exclusão. Em “Tangerines”, mesmo que estejamos em Los Angeles, nunca saímos da margem: o cruzamento entre Santa Monica e Highland, território de trabalho das prostitutas transgénero e onde se cruzam também afro-americanos, brancos pobres e emigrantes (neste caso arménios). “The Fits” passa-se no West End de Cincinatti, território segregado da cidade do estado do Ohio – com um só plano, Holmer enquadra esse lugar de uma forma elegante e concisa.
Em termos temáticos, abordam ambos as questões de identidade de género. A questão transgénero é o motor de “Tangerine” em termos narrativos e de produção (as duas actrizes Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor são trangénero e, como o realizador reconhece numa entrevista, foram em grande medida responsáveis pela história do filme). Em “The Fits”, Toni é uma rapariga que, por força das circunstâncias – o irmão, que parece ser o seu único companheiro na vida, trabalha num ginásio de boxe – cresce nesse mundo altamente masculinizado. Quando se encontra com o universo feminino – prodigioso plano em que é “varrida” pela onda de dezenas de bailarinas que celebram a vitória na numa competição – ganha uma curiosidade que não é só adolescente, mas entendível porque contraditória com o mundo em que sempre se viu.
É impossível não pensar em John Cassavetes quando se assiste aos dois filmes: as personagens marginais, os temas habitualmente arredados do cinema, um ritmo que chega a ser frenético e a banda sonora, sobretudo por via do jazz que pontua “The Fits”. O novíssimo cinema norte-americano vem das margens. Mas não foi sempre assim?