Edgar Pêra, o guru da cine-indecência

Fomos ao Teatro Jordão, porque ouvimos dizer que tinham avistado por lá uma série de fiéis de uma suposta legião da cine-decência, com tochas a arder e capuzes brancos ao estilo do Ku Klux Klan. Para além de tão interessante fenómeno, animava-nos também a possibilidade de entrar — alguns de nós pela primeira vez — no interior do outrora faustoso e impressionante Teatro de Jordão, o maior cine-teatro de Guimarães e arredores, que teve o seu apogeu durante dos anos 40-50-60 e que encerrou ao público em 1994.

Mal entramos na Avenida D. Afonso Henriques, logo ali ao lado do mítico e enigmático café-aquário Danúbio, começamos a avistar as primeiras tochas a arder. Ao passar na Auto-Garagem Avenida, vislumbrámos os primeiros capuzes brancos à KKK. Lá nos aproximamos, cautelosamente, e como-quem-não-quer-a-coisa-e-tal, entrámos discretamente no interior do cine-teatro e depois na própria sala.

À entrada da sala, um enigmático cartaz negro com a inscrição “Cinesapiens” adensava o mistério, enquanto que, lá dentro, decorria um ainda mais enigmático cerimonial iniciático: um hipnotizante juramento de novos membros da legião da cine-decência que incluía juras de fidelidade ao bom cinema “educativo e de entretenimento” e a promessa de combate mortal às lascividades morais e sexuais. Ou, o que trocado por miúdos significa: os gajos lutavam contra as cenas de gajas nuas e/ou escaldantes e pancadaria no grande ecrã.

Sentado na primeira fila da plateia, à esquerda, de óculos escuros, o guru da seita dava indicações. Aproximámo-nos cautelosamente até ele e quando nos preparávamos para o abordar, uma espécie de sacerdote auxiliar levanta-se e lança um estridente: “Corta! Vamos filmar outra vez tudo de novo!” Foi então que percebemos: o sacerdote auxiliar era o Rodrigo Areias e o guru era o Edgar Pêra.

Com toda aquela tensão de quem invade a gravação de um filme, lá nos mantivemos quietos e calados, tentando ser transparentes. Mas acreditem que, para um gajo com 100 quilos, a tarefa não é nada fácil. Um espirro imprevisto e haveria sérias possibilidades de sermos expulsos ou açoitados, por encarecermos esta produção nacional. Como todos sabemos, em cinema, todos os segundos valem ouro.

Aproveitamos a pausa entre os takes, “para dar mais brita às tochas”, e falámos um pouco com o mais experimental dos cineastas portugueses, que, por estes dias, se encontra em Guimarães a rodar Cinesapiens, um filme inserido no projecto Curtas em 3D, que também conta com a participação dos monstros Jean-Luc Godard e Peter Greenaway. Ou seja, os gajos importantes andam todos a gravar em Portugal. Baseado em factos verídicos e em textos originais recolhidos e traduzidos do inglês, Edgar Pêra recupera um contexto de exacerbamento moral em torno do fenómeno cinematográfico, em que grupos de cidadãos se preocupavam com as implicações sociais e morais que essa forma de expressão visual e sonora poderia provocar nas mentes mais influenciáveis. Foram os tempos da criação de códigos de conduta moral, como o célebre Código Hays nos Estados Unidos, ou a publicação da primeira legislação censória em Portugal.

Quando me falou disso lembrei-me de quando exibiram O Império dos Sentidos pela primeira vez na RTP 2, nos idos de 1991. Foi um escândalo: o Arcebispo de Braga disse que aprendera mais da coisa vendo dez minutos do filme, do que em 67 anos de vida. Pronto, não se falou de outra coisa durante semanas. Revi-o há dias e digo-vos: muita água já rolou debaixo da ponte, porque, com o olhar de 2012, aquilo é um filme para “meninos”. A cena a que pudemos assistir é expressiva e esclarecedora do tom adoptado por Pêra, que faz lembrar um pouco o ritmo gótico d’ O Barão, a sua longa-metragem anterior que surpreendeu muita boa gente. Aqui o escriba tem-se habituado a esperar tudo do cineasta Pêra, homem de permanentes experimentações. E quem melhor que Edgar Pêra para dar o pontapé de saída em Portugal no cinema 3D? Quando há uns meses comprou uma versão “doméstica” de uma máquina de filmar em 3D, “o homem da câmara de filmar” (como o designou, e bem, em 2001 Augusto M. Seabra a propósito d’ A Janela) foi explorando a tecnologia com que agora filma Cinesapiens, agora rodeado de engenheiros que trabalham com essa técnica para fins oftalmológicos e científicos.

Bem, pelo que vimos e ouvimos, este Cinesapiens promete. Edgar Pêra não costuma desiludir e esta produção reúne diversos factores que podem surpreender positivamente os espectadores, como este escriba, que ainda não viram as potencialidades do 3D acrescentar algo de significativo à experiência cinematográfica. Dito isto, esqueçam o Avatar e similares. O que aí vem é muito melhor.

 

Texto originalmente publicado na secção Gróia 2012 da revista Vice, com autoria de Paulo Cunha.

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