Porque é que Quentin Tarantino quer desistir do cinema? Talvez porque ao ver críticos a falar do seu último filme, deve ser uma desilusão perceber que a nota máxima não sobe. Talvez porque, como tem dito nas entrevistas, está cada vez mais perto de ultrapassar o tempo de vida do seu primeiro amor, o celulóide (Tarantino disse que a cinema digital é “televisão em grupo”). Talvez porque após duas décadas de trabalho, Tarantino desistiu de imitar outro(s) e começa a imitar a si mesmo. Com este filme e o anterior Tarantino parece gerar o seu próprio género, filmes de vingança que são como correções à História Cinematográfica com música e sangue a explodir sobre o clímax (e tanto, tanto sangue, mas sempre menos “justo”, pareceu-me, que o sangue ariano que escorria com vigor e alegria em “Inglorious Basterds”). Com este filme Tarantino está tão próximo de fazer um mau filme que tenho de sugerir que talvez ele deva desistir do cinema, ou então que recupere colaboradores geniais como Roger Avary, que foi alienado depois de ver o seu nome retirado dos créditos do argumento de “Pulp Fiction”, ou Sally Menke, que tragicamente perdeu a vida em 2010.
O filme é Tarantinesco a tal ponto que está próximo de uma paródia a filmes de Tarantino. Existe uma linha ténue entre colocar David Bowie sobre Mélanie Laurent a levar um tiro no peito e Jamie Foxx com música de James Brown a matar esclavagistas (muitos esclavagistas) e da primeira vez que vi o filme achei que o filme ia longe demais e era uma auto-paródia acidental, um filme mau, pior que Death Proof, uma prova que Tarantino tinha perdido o juízo entre tabletes de ácido tomadas num clube noturno islandês.
Na segunda visualização pareceu-me muito melhor, um filme que, parecido com “Death Proof” exagera nos fetiches mas não se auto-destrói em planos de pés (Tarantino adora pés). Também vi no cinema, e coisa que faz qualquer filme parecer melhor é companhia e um ecrã generoso.
Não tenho a certeza se a minha mudança de opinião se deveu ao filme, que ao rever me pareceu mais fácil ignorar certas partes, ou ao facto de ter lido o argumento entre as duas visualizações, e assim me pude deleitar com a ideia do que o filme podia ter sido.
Leonardo Dicaprio interpreta Calvin Candie, dono da plantação de algodão Candyland (ou “Terra dos Doces”, traduzido literalmente). Roger Ebert diz que nomes com piada nunca têm piada, e aqui não é excepção – há aqui nomes de personagens como “Big Daddy” (Papá Grande) e Broomhilda Von Shaft (família Von Shaft, cujo descendente é “Shaft” e os filmes de blaxploitation dos anos 70). Tarantino está aqui a afogar-se em referências que ninguém percebe, e parece ter esquecido os seus filmes-collage anteriores, onde não precisavamos de perceber de onde é que ele retirava a inspiração para perceber que o filme era divertido.
Durante a segunda visualização, anoto que Cristoph Waltz interpreta uma versão de si próprio como actor e performer construída para Tarantino que não me pareceu muito diferente do filme anterior (e Jamie Foxx interpreta Jamie Foxx). Mas sobre Leonardo Dicaprio, bem, no ultimo terço do filme temos uma cena onde ele explica a frenologia, “hipótese” da altura que analizava o crânio para distinguir inteligências onde naturalmente o crânio europeu era superior a todos os outros crânios e acidentalmente começa a sangrar da mão e esfrega o sangue na face da escrava que está a tentar vender. Um amigo meu com quem fui ver o filme explicou-me que Dicaprio se feriu realmente e que continuaram a filmar. Não sei se, entre takes, esguicharam um pouco de ketchup na mão de Dicaprio para fazer um segundo take, mas a realidade é que qualquer coisa nessa cena revitaliza-nos – qual foi a última vez que vimos um actor no topo da sua carreira a interpretar alguém não (só) moralmente incorrecto, mas moralmente impossível, monstruoso, inaceitável e completamente fora de si? Há qualquer coisa de profundamente certo e brutal sobre esta cena, e depois de hora e meia Tarantino resplandece como o ‘wunderkind’ do cinema que ganhou a Palma de Ouro há duas décadas atrás e mostra-nos a brutalidade da sua escrita quando ela se aproxima da verdade – No momento em que Dicaprio, com o seu bigode aperaltado esfrega o seu sangue fresco na cara da mercadoria humana como se fosse lixo (um cão seria tratado melhor) e discute abrir-lhe o crânio “porque me apetece”, nesse momento temos a certeza que o filme valeu a pena ser feito. Aqui está a brutalidade animal do esclavagista exposta pelo que é, uma brutal e monstruosa hipocrisia sem fim, onde ambos os indivíduos perdem qualquer dignidade humana.
Se sou demasiado explícito na descrição, lembro-me que na segunda exibição à qual fui, uma menina de não mais quinze anos começou a soluçar histericamente a partir do momento em que dois homens resolveram uma luta até à morte quando um deles arrancou os olhos ao outro e abriu-lhe o crânio com um martelo. A menina teve de ser retirada da sala pelos pais, enquanto cobria os olhos, aos gritos. Por mim prefiro sempre que o público saiba o que vai ver. Quanto ao resto do filme, o melhor seria Tarantino enviar uma carta a Roger Avary a pedir desculpa e tentar refazer a amizade.