“Ajuda! Está aí alguém? Precisamos de ajuda!!”

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A dada altura do filme, bem perto do seu final, a personagem interpretada por Glória de Matos dirige-se a uma porta e, em plano frontal com a câmara, grita desesperada qualquer coisa como: “Ajuda! Está aí alguém? Precisamos de ajuda!!”. Ao ouvir isto, não resisti a fazer num comentário em voz baixa: “aproveitem e ajudem o projeccionista…” Aparentemente devo ter feito o comentário num tom mais alto do que pretendia porque algumas pessoas que me rodeavam riram espontaneamente.

A noite tinha tudo para ser perfeita: inserido no ciclo Castelos de Cinema, era projectado ao ar livre, nos claustros do Paço dos Duques, Benilde ou a Virgem Mãe (1975), um dos filmes menos visto de Manoel de Oliveira; céu limpo, algumas estrelas tímidas e a lua brilhante; “sala” bem composta por um público bastante heterogéneo e interessado; cópia em 35mm com a garantia de qualidade da Cinemateca Portuguesa. Infelizmente, a projecção foi bastante acidentada: desfocada, descentrada da tela (o que prejudica o extraordinário trabalho de mise-en-scène de Oliveira), tremores constantes e até saltos em três das cenas (uma bastante capital até!).

© José Caldeira | Guimarães 2012

O filme de Oliveira foi uma feliz escolha para um ciclo de cinema improvável mas com uma justificação muito interessante: “Revisitar os espaços delimitados, com regras próprias, atraindo o que está à sua volta, mas também repelindo tudo o que possa pôr em causa a sua lógica interna…”

Adaptado de uma peça teatral homónima de José Régio levada à cena em 1947 e ambientada algures no Alentejo profundo dos anos 30, a adaptação de Oliveira seria rodada e estreada em pleno PREC, foi bastante mal recebido pelo público e pela generalidade da crítica e considerado um filme “fora do tempo” e das convulsões politicas e sociais da época. De facto, um drama familiar sobre a suposta gravidez divina de uma jovem com laivos de loucura não parecia suficientemente revolucionária comparado com filmes como As Armas e o Povo (1975, Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica), Liberdade para José Diogo (1975, Luís Galvão Teles), Continuar a Viver – Os Índios da Meia Praia (1976, António da Cunha Telles) ou Barronhos – Quem tem medo do poder popular (1976, Luís Filipe Rocha).

Mas cinematograficamente, este filme de Oliveira é dos mais revolucionários do cinema português de todos os tempos: a câmara não serve apenas para ilustrar os diálogos, optando por se deter demoradamente em personagens quando estas estão apenas a ouvir, como o espectador, ou a colocar-se em plano frontal com os actores como se eles estivessem, de facto, a falar directamente para o espectador (como acontece no plano do pedido de ajuda de Glória de Matos referido no início); um extraordinário trabalho de mise-en-scène de Oliveira que usa apenas dois cenários no filme todo (a cozinha e a sala); e uma desconcertante e surpreendente banda sonora da responsabilidade de João Paes.

Apesar de todas as contrariedades técnicas, foi um serão muito bem passado. E o melhor é que o cenário repete hoje com Robert Bresson, amanhã com o Antonio Campos (sem acento porque não é o nosso, é o americano…), sexta-feira com o Monte Hellman e sábado fecha com Elem Klomov. E não se esqueçam de uma mantinha para as pernas porque a noite vai ficando fria…

© José Caldeira | Guimarães 2012