A vida de Nana, no São Mamede

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Quando estreou Viver a sua vida (1962), Jean-Luc Godard era um dos cineastas em plena ascensão, contando no curriculum com dois dos mais aplaudidos filmes do cinema moderno europeu: O Acossado (1960) e Uma mulher é uma mulher (1961). Nos anos seguintes, o seu prestígio do promissor cineasta confirmou-se com obras fundamentais como O Desprezo (1963), Bando à parte (1964), Alphaville (1965) e Pedro, o Louco (1965). Tratou-se inquestionavelmente da fase mais consensual do jovem turco que mais radicalizaria o seu discurso e a sua prática fílmica nos anos seguintes.

A história do filme resume-se brevemente: Nana (Anna Karina) é uma jovem parisiense que abandona o seu marido e o seu filho para iniciar sua carreira como atriz. As coisas correm mal do ponto de vista financeiro, Nana é expulsa do quarto aligado e torna-se prostituta. No entanto, o interesse deste filme não é a originalidade da sua história, mas a forma como Godard a narra.

Dividido em 12 cenas, cada um com momentos do quotidiano mais ou menos banal da protagonista, o filme afirma-se desde logo contrário a uma narrativa convencional, assumindo um ritmo fragmentado e usando recurso técnicos como o jump cut para acentuar essa descontinuidade. Viver a sua vida também se socorre da estratégia dos 12 intertítulos descritivos introdutórios para libertar as cenas das palavras ou da justificação causa-efeito que poderia complicar a economia narrativa do filme: enquanto os intertítulos contextualizam o espectador, e desfazem qualquer efeito de suspense que possa causar distração, as cenas valorizam sobretudo a vertente visual e o carácter reflexivo pretendido por Godard.

Assim, esse mecanismo criado pelo cineasta permite investir na reflexão, permitindo ao espectador interrogar-se mais sobre a sua própria existência do que sobre a existência das personagens na tela. É, no fundo, isso que se demonstra com a cena – das mais belas de todo a história do cinema – da ida da protagonista ao cinema para ver o filme A paixão de Joana D’Arc (1928), um clássico do cineasta Carl Th. Dreyer. A influência que o filme de Dreyer produz na protagonista assemelha-se à que Godard pretende exercer sobre os espectadores de Viver a sua vida, ainda que menos emocional e mais racional.

Como toda a obra de Godard desse período, o filme pretende olhar para o presente e dissecá-lo para além do material ou do visível. A forte presença do discurso filosófico (eminentemente existencialista) e do sociológico (a propósito da condição feminina e da prostituição produzidos por Marcel Sacotte) reforça essa vontade de que o filme tenha uma responsabilidade com o presente, com a condição humana e com a própria ideia de cinema e da sua função social ou estética. A adopção de um estilo influenciado pelo documentário próprio do cinéma vérité, então muito popularizado por Jean Rouch, reforçava essa vontade naturalista na representação e a verossimilhança das cenas.

Ainda que de forma dissimulada mas certamente consciente, Godard esboçava já uma ideia de filme-ensaio que marcaria a sua obra futura. Aqui, ainda que de forma indirecta, Godard colocava já os seus protagonistas em situações limite onde eles podiam expressar as suas convicções, comentar questões mais actuais ou, por vezes, assumindo mesmo o discurso directo através do uso do monólogo. Era a afirmação de um cinema com vontade em dialogar com o seu tempo, em questionar o espectador e fazer que ele próprio se questione e à sua condição. Ainda assim, Viver a sua vida conseguia ser um dos filmes mais emocionais e melodramáticos da carreira de Godard, como demonstra o desfecho trágico da narrativa com a morte da heroína. Com o tempo, essa vertente emocional e dramática foi perdendo espaço nos filmes de Godard, tornando-os progressivamente mais ensaísticos e racionais. Mesmo formalmente avesso a uma representação naturalista, usando técnicas como a não-sincronização do som com a imagem ou o diálogo directo dos actores com a câmara, o cinema de Godard continuava em Viver a sua vida o seu caminho para a consolidação do novo paradigma estético moderno que revolucionou o cinema durante aquele período.

Texto publicado originalmente no Boletim do Cineclube de Guimarães, Junho de 2012.

19 JUNHO 21h30  |  [CAE] SÃO MAMEDE  |  CICLO DE FILMES DE 1962