A Morte paira à janela

Vemos a rotina de Pai e Filha enquanto se preparam para algo terrível. Ela ajuda-o a vestir-se. Eles comem batatas. Ela despe-o. Ele come batatas. Ela observa a janela. O cavalo recusa-se a sair do estábulo. Quase não falam um com o outro.

Dizem que Frederich Nietzche morreu louco e sozinho, sem qualquer vestígio do génio que o animara para escrever. No seu último filme, Bela Tarr abre com uma história sobre o filósofo alemão ( o filme começa com o monólogo que se vê reproduzido em cima em aúdio sobre negro, ou como diria César Monteiro, cinzento). É simples: Nietzche sai à rua e vê um cavalo a ser açoitado brutalmente. Ele abraça o cavalo, chora e consegue parar com a brutalidade, mas em breve enlouquece e nunca mais recupera.

Esta história, e outro longo monólogo por um vizinho que vem pedir ‘pálinka’ (a bebida alcóolica local) oferecem uma ideia sobre o filme, mas não o explicam. Nietzche só parece estar presente para colocar a hipótese do fim do Mundo.

Questões aparecem e desaparecem. É este o cavalo que Nietzche abraçou? É este o homem que açoitava brutalmente o cavalo em Turim? Na primeira cena do filme ele açoita o cavalo, mas depois o cavalo mal se mexe, não come, e não colabora. Uma série de eventos inexplicáveis parecem estar a mudar o mundo (o vizinho explica, sem grandes preocupações que uma aldeia vizinha foi “arrasada pelo vento”). O filme parece feito de maneira a provocar perguntas e não oferecer respostas. O que o filme mostra, contudo, é quase absurdo na sua realidade. A relação entre o Pai e Filha é mecânica, feita de anos e anos de repetição, que cansados e sem grande esperança os dois parecem ter aceite como um modo de vida. Há alturas em que o filme opera num nível de filme de terror, mas o que nos assusta é a rotina destas duas pessoas. A meio do filme vemos o Pai açoitar o cavalo outra vez e não o culpamos, nem a ele, nem ao cavalo. Compreendemos o que Nietzche deve ter visto. E por vezes o cavalo parece mais humano do que Pai e Filha.

Bela Tarr, o cineasta húngaro adorado um pouco por cinemas meio-cheios em todo o mundo, é reconhecido por uma combinação de utilização insistente do preto e branco e takes longos e elaborados. Os seus filmes são intimistas, profundos, e marcados como “difíceis” mesmo pelos críticos mais amigáveis. É pena. O preto e branco neste filme é lindíssimo. Samuel Fuller, cineasta americano, disse: “a vida é a cores, mas o preto e branco é mais realista”. E Bela Tarr tem a rara habilidade de fazer poesia com movimentos de câmara.

Algumas pessoas protestam, consigo ouvi-las na minha cabeça “Um filme a preto e branco de duas horas e meia?” Mas durante o filme fui olhando em volta à procura de alguém a ganhar o sono – não vi ninguém. Os filmes de Bela Tarr parecem ter a rara capacidade de transfixar a audiência, fazer entrar uma espécie de transe em que cada gesto e movimento parecem ser importantes (tal como muitas vezes são). Um amigo que também viu o filme disse que os filmes de Bela Tarr “despertam”. O meu amigo disse também que os cinemas húngaros permitem o uso liberal de cerveja e de tabaco durante o filme, e que isso pode ajudar a explicar a duração dos filmes do cineasta húngaro.

“O Cavalo de Turim” parece ter meia a hora a mais, mas as primeiras duas horas são das melhores experiências que passei no cinema este ano. E agora é so esperar que o Cineclube de Guimarães passe “Era Uma Vez na Anatólia”…

 

– Rafael Lino